domingo, 25 de abril de 2010

O corpo em cena


A voz precedida da zelosa elaboração mental corria sem constrangimentos pela sala. Percorria o espaço e buscava o encontro da lembrança com os desejos enquanto dialogava com a interlocutora. O dono da voz, Ronie Rodrigues, tentava reconstruir o trajeto que percorreu depois do exato momento que enveredou pelos caminhos da dança e do teatro.

A primeira imagem que ele atribuí como impulsionadora nesse processo de querer fazer algo chegou aos 13 anos. Os ouvidos atentos do pai, Antenor, não deixaram escapar uma cena que acontecia dentro do ônibus: duas meninas conversavam sobre o grupo de teatro do Colégio Estadual do Paraná, o Gruta. Antenor contou o que ouviu e era o que faltava para Ronie dar início à sua carreira artística.

O interesse em investigar as questões relativas ao teatro físico apareceu logo de início e foi experimentado primeiramente em 2002 no espetáculo Homem de papel e acrílico, de Michelle Siqueira. Ali aconteceu o inevitável. A inclinação para a dança se solidificou e se incorporou definitivamente no artista.

O gosto em pesquisar o teatro tendo o corpo como base da construção dramatúrgica permaneceu durante o curso de artes cênicas, que começou na Universidade de Londrina e foi concluído na Faculdade de Artes do Paraná.

No entremeio das atividades acadêmicas, Ronie participou como bolsista e residente na Casa Hoffmann - Centro de Estudos do Movimento. Lá, ele levou a fundo o seu trabalho autoral, que culminou no projeto Uma pequena urgência em dizer algo.

A investigação artística na dança também foi vivenciada durante os meses que ele esteve no CEM (centro em movimento), em Lisboa, Portugal. Ao mesmo tempo em que se ambientava novamente em Curitiba, Ronie transitava entre os vários estados corporais no espetáculo De maças e cigarros, de Gladis Tridapalli.

Hoje, com 25 anos, Ronie preenche os seus dias com sessões de psicanálise lacaniana, aulas de francês, acupuntura, corridas no Parque Barigui e ensaios com o grupo Obragem. No meio de tudo, ele ainda acumula a novidade de dirigir uma peça de teatro.

Um pequeno espaço líquido nasceu como projeto de conclusão de curso e chegou a fazer temporada na mostra Coletivo de pequenos conteúdos no último Festival de Curitiba. Aqui ele faz uma reflexão sobre os lugares que a dança e o teatro ocupam em sua vida.

O Estado: Para você, quais as diferenças e peculiaridades de trabalhar com teatro e dança?

Criar a partir do corpo e no corpo é algo que me move e que experimento trabalhando com dança e com teatro, mas é claro que são duas linguagens com suas especificidades, e mesmo numa criação em que essas linguagens se cruzam, os procedimentos e os caminhos para a criação são diferentes.

Não acho que pensar uma dramaturgia corporal seja algo exclusivo da dança contemporânea. Uma questão que me desperta interesse tanto na dança como no teatro é a idéia de um corpo que experiência e não que representa.

O Estado: O que te motiva no teatro?

O teatro é a maneira que encontro de discutir algumas questões que me inquietam. Acredito realmente na sua potência física e artística. Embora possa soar um pouco clichê pensar a arte como "agente transformador" é exatamente isso que me move a continuar criando.

Lembro de uma frase da Clarice Lispector que diz que quando ela escreve não quer mudar nada, mas sim tentar de alguma maneira desabrochar. Sei lá, talvez seja por aí...

O Estado: E a dança, que lugar ocupa em sua vida?

Não tenho uma resposta exata. O que acontece é que desde que voltei de Portugal sinto muita vontade de produzir e pensar a dança. Quando não estou dançando em nenhum projeto, faço aulas com profissionais que me interessam, para dessa forma satisfazer um pouco essa "vontade de dança".

Pensar a dança para mim é pensar em maneiras e formas de poder produzi-la. Para isso é necessário batalhar por editais, por parcerias, tentar por um lado, por outro...


O Estado: Como as duas atividades influenciam uma à outra?

As experiências dos trabalhos se inscrevem em mim, e as carrego em qualquer atividade que eu exerça. Não sei dizer o que influencia o quê. Não posso dizer também que são atividades que se complementam, pois nem sempre é isso que eu sinto. Talvez daqui uns 10 anos eu possa elaborar um pouco mais essa questão.

O Estado: Como foi a experiência de dirigir sua primeira peça, Um pequeno espaço líquido, resultado de trabalho de conclusão do curso de artes cênicas da FAP?

Foi muito importante porque pude rever meu papel como intérprete. Propor esse projeto foi essencial para refletir sobre as especificidades das funções dentro de um trabalho artístico.

Um pequeno espaço liquido só existiu a partir do encontro dos artistas: Talita Dallmann, Negra Silva e Lyncoln Diniz e também pela colaboração de Augustho Ribeiro, Clarissa Oliveira, Amábilis de Jesus e Luciana Barone.

O Estado: Que coisas o trabalho com o grupo Obragem traz para a sua experiência pessoal?

A Cia tem um papel extremamente importante no meu percurso artístico. É um espaço de troca e aprendizado enorme. Eu admiro muito os artistas integrantes. É uma companhia teatral realmente engajada na pesquisa de linguagem e no pensamento do corpo do ator.

O Estado: Quais os seus próximos planos?

Dar continuidade ao projeto Dossiê Büchner da Obragem, que integra diversas ações, entre elas uma montagem inédita prevista para final de agosto. Continuar parcerias de trabalho, como as que eu tenho com a artista Luciana Navarro, e com a artista da dança Gladis Tridapalli. No início de maio farei uma residência artística com os franceses: Guillaume Lauruol e Cathy Pollini, através do Prêmio Klauss Vianna de Dança.

por PAULA MELECH
foto ANDERSON TOZATO
originalmente publicada na edição impressa do jornal O Estado do Paraná

terça-feira, 20 de abril de 2010

Os piratas do rock


O som da Confraria dos Irmãos da Costa - ou simplesmente Confraria da Costa - está longe de qualquer experiência musical habitual. A banda curitibana enfrentou o desafio de unir referências que vão da originalidade do norte-americano Tom Waits, com sua voz rouca e letras intrigantes, até a multiplicidade de Andrew Bird, com sua mistura inusitada de instrumentos.

Ambientada em uma temática de piratas, o primeiro CD homônimo da Confraria da Costa aposta em uma sonoridade com caráter próprio que une bandolim, flauta e violino tendo como base o bom e velho rock and roll. O resultado é um som meio punk- rock cigano ao estilo de Gogol Bordello, que traz ao nosso tempo o clima dos piratas que viviam no século XVI.

Enquanto resgatam o ambiente dos marujos, a Confraria se revela crítica e irônica nas letras das canções. Em Certamente a mente mente, o trocadilho de palavras denuncia o teor crítico do trabalho: “Mente com os olhos vendados/Com os dois pés amarrados/Mente até de trás pra frente/Cegamente a mente mente”.

Com forte influência de Waits, em Confidencial, o compositor Ivan Halfon mostra uma faceta mais pessoal, o homem que procura o auto-conhecimento. “Tranquem a porta da minha casa/Depois preguem as janelas/Por uns tempos, eu acho/vou me ausentar”.

O processo de composição geralmente começa pela melodia ou a intenção vem do próprio título das músicas. “Em muitos casos, foi o nome da canção que deu a ideia para a letra. Mas a primeira música [Canto dos piratas] surgiu a partir de um poema”, conta Halfon, que também é vocalista, toca flauta e violão.

No álbum, o repertório mistura estilos de música cigana, polkas, csárdás (um tipo de dança húngara) e cabaré. O vocalista divide a instrumentação com Marcelo Stancatti (guitarra e bandolim), Jan Kossobudzki (violino), Pantaleoni (baixo) e Abdul Osiecki (bateria).

A belíssima ilustração da capa tem uma homenagem a Tom Waits, que aparece encostado no balcão do bar. A arte é de responsabilidade da Cia. de Canalhas, representada por Carlon Hardt e Lucas Fernandes.

A ideia de uma banda que tivesse referências nos piratas não foi proposital. “A gente queria fazer algo diferente. No começo até tentamos outras coisas, mas deu certo quando chegamos nesse tema”, diz o compositor. Os shows da banda são verdadeiras performances musicais, com claras referências a Gogol Bordello.

A banda enfrentou o desafio de unir opções estéticas nem um pouco óbvias e lançar o primeiro álbum de forma independente. E deu certo. No show de lançamento oficial, que aconteceu no mês passado, o CD foi generosamente bem recebido pelo público.

Prova disso é que Confraria está com a agenda lotada de shows e ainda este mês (dia 24) lança o segundo CD, Piratas ao vivo, pelo projeto A grande garagem que grava, no Teatro Universitário de Curitiba - TUC. O álbum traz oito canções inéditas e segue a linha do primeiro trabalho.

Enquanto o disco ainda não tem uma estratégia de distribuição bem definida, está disponível no myspace.com/confrariadacosta e myspace.com/confrariadacosta.

por PAULA MELECH
foto TIAGO FERRAZ
originalmente publicada no jornal O Estado do Paraná.

domingo, 18 de abril de 2010

O intérprete em estado puro


Há vozes que carregam em si a suavidade e a potência em estado puro, são pinceladas da alma na melodia das canções. A voz de Ney Matogrosso é mais do que um instrumento: nos invade sem ocupar um milímetro de silêncio ao redor.

Inovador, ele se despe da exuberância e assume um caráter mais intimista na interpretação das canções do seu novo álbum, Beijo bandido (EMI) hoje, às 21h, no Teatro Guaíra.

Ney não é somente um dos maiores intérpretes da música brasileira, não é apenas a inconfundível voz que marcou o experimentalismo do Secos & Molhados e entonou composições de Chico Buarque, Cartola e Tom Jobim. Ele também é um artista múltiplo que se reinventa a cada novo trabalho.

Depois da exuberância cênica de Inclassificáveis, o cantor sugere um contraponto à pegada roqueira e mergulha em uma atmosfera quase camerística. O título Beijo bandido, inspirado na letra de Invento (Vitor Ramil), dá o tom das intenções de Ney ao se aventurar em um projeto no qual a criteriosa seleção de repertório é sublinhada pela excelência vocal.

“O disco é compatível com o meu momento, é um disco de intérprete. Estou fazendo a minha interpretação com uma grande liberdade”, revela. O canto se afina com a formação de quarteto de cordas, com a qual Ney trabalha pela primeira vez. “É inovador. No início fiquei preocupado, mas perguntei ao Leandro Braga [direção musical], o que ele achava. Ele disse que poderíamos fazer de samba até rock com essa formação, apesar de não ser muito comum”.

A carga emocional permeia todas as canções e alcança o ápice em A cor do desejo (Junior Almeida/Ricardo Guima) e As ilhas (Astor Piazzolla/Geraldo Carneiro), retomada do compacto que acompanhava o primeiro álbum do cantor, de 1976.

Ney também visita o cancioneiro popular em músicas como Segredo (Herivelto Martins / Marino Pinto) e Tango para Tereza (Evaldo Gouveia / Jair Amorim). A vertente “mais pop” do disco está representada em Nada por mim (Herbert Vianna/Paula Toller) e Mulher sem razão (Cazuza / Dé / Bebel Gilberto).

A gravação de A distância, de Roberto e Erasmo Carlos, foi motivada depois que o cantor viu a versão em italiano da canção no filme de Luchino Visconti, Violência e paixão (1974). Além do repertório do disco, Ney canta Incinero (Zé Paulo Becker) e Da cor do pecado (Bororó).

O momento forte do show -onde a extensão vocal do intérprete é capaz de provocar arrepios - é alavancando pelas canções Bicho de sete cabeças (Geraldo Azevedo/Zé Ramalho/Renato Rocha), De cigarro em cigarro (Luiz Bonfá) e Invento (Vitor Ramil).

Menos performático, o cantor considera esse show o mais teatral de sua carreira. “Tem um formato de recital, onde o foco é na palavra”. Ney estará no palco com o mesmo figurino das fotos do encarte do disco, assinado pelo estilista Ocimar Versolato, responsável também pela direção artística do projeto gráfico do CD.

A estética sutil do show é completada com imagens dele projetadas em um telão ao fundo e nas laterais do palco. Ney divide o palco com Felipe Roseno (percussão), Leandro Braga (piano e direção musical), Lui Coimbra (cello e violão) e Ricardo Amado (violino e bandolim).

por PAULA MELECH
originalmente publicada no jornal O Estado do Paraná.

sábado, 17 de abril de 2010

Os sentidos da palavra


"Pescador da barca bela/Onde vais pescar com ela/Que é tão bela/Oh pescador?". O poema Barca bela, do escritor português Almeida Garrett foi apresentado a Luiz Felipe Leprevost por um professor do Colégio Paranaense, em Curitiba. Ele estava na sétima série e ainda guarda na memória as estrofes declamadas em sala de aula.

Talvez ali fosse o início do que os próximos anos lhe reservariam. A sensibilidade em observar as coisas do mundo começou cedo e logo ele percebeu a folha de papel como cúmplice de seus conflitos e alegrias.

O curitibano de 31 anos é escritor de frases que expressam os sentimentos mais íntimos da alma humana e também um espectador crítico da vida. Entre as principais publicações do autor estão o livro de poesia Ode mundana (2006) e os de contos Inverno dentro dos tímpanos (2008) e Barras antipânico e Barrinha de cereal (2009) ele ainda mantém um blog, o notasparaumlivrobonito.

Leprevost é um artista multifacetário. A poesia o levou para o teatro e as questões cênicas foram aprofundadas na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), no Rio de Janeiro. A experiência como ator e dramaturgo o conduziram para uma vivência diferente de sua obra. "Experimentar os textos no seu próprio corpo é sempre um aprofundamento, é sempre se rever, se reinventar".

Ultimamente, ele tem se destacado em Curitiba como dramaturgo, principalmente em parceria com a diretora Nina Rosa Sá. É dele o texto das peças Na verdade não era - que esteve em cartaz por três temporadas - e Pecinhas para uma tecnologia do afeto.

Depois de comprar seu primeiro livro aos 14 anos, Antologia poética, ele queria ser como Vinícius de Moraes - ao mesmo tempo escritor e compositor. Motivado pela canção Geni e o Zeppelin, de Chico Buarque, ele percebeu que a música pode ser "vista com os ouvidos" e se encantou com a ideia.

Hoje, ele cultiva parceiros como Troy Rossilho e acredita que existe um tipo de poesia feita para canções. Para o escritor, letra de música é poesia, é "um jogo que você propõe com as palavras, como você encadeia essas palavras e procura a musicalidade nelas".

Nesta entrevista, que aconteceu no Café Mafalda, Leprevost falou sobre as palavras em suas mais diversas formas de expressão.

O Estado: Você se lembra do momento em que a poesia surgiu na sua vida?

Viajava com a família. No rádio do carro tocava Cabocla Tereza, de Raul Torres e João Pacífico. Os vocais combinados às violas, que tornavam pública uma trágica estória, me fisgaram os poros. Eu era uma criança de dez anos, e tive um alumbramento.

O Estado: Que motivações o levam a escrever?

Talvez os humanos mecanismos de se estar sozinho e sem explicação em mim sejam preponderantes. Talvez por acreditar que a literatura é uma das boas chances que a memória tem de perdurar e nossa ancestralidade se fazer inextinguível. Mas quem pode dar certezas? Escrevo mesmo para ter dúvidas e contradições.

O Estado: Quando você percebeu que já era um escritor?

Quando notei que passava horas debruçado sobre o caderno. A mão direita doía mas não largava a caneta. Me via obsessivamente anotando fragmentos de vidas, as minhas e as dos outros. Inventando. Me transformei num fazedor de cebolas, confeccionando a partir do miolo, de dentro pra fora, devolvendo-lhes camadas, num exercício pra vida toda.

O Estado: Que caminhos o levaram ao teatro?

Nutria o desejo de produzir textos teatrais. Em 2002 fiz uma oficina de final de semana para atores. Não parei mais. Precisei me formar ator, experimentando textos com o corpo, pra só daí me sentir capaz em relação à dramaturgia. Então, em mim, quem escreve pra teatro não é o escritor, mas o ator. O que é um paradoxo (que me agrada, aliás), já que sou essencialmente escritor.

O Estado: E a música, como foi esse encontro?

Aos 14 anos me deparei com Geni e o Zepelim, do Chico Buarque. Recebi tal potência intuitivamente. Hoje posso apontar algo de suas inúmeras qualidades: A indicação da hipocrisia. O fato de ser uma canção narrativa, com personagens e ação central que evolui. É música pra gente ver com os ouvidos. É literatura sonora. É ontológico, vem da nossa necessidade de enunciação.

O Estado: Como é para você fazer parcerias no trabalho com teatro e música?

Minhas parcerias começam com o afeto. Sou incapaz de criar com alguém sem que a amizade chegue antes. É o caso de meu providencial encontro com a diretora Nina Rosa Sá. Também isso se dá em relação às canções que componho ao lado de Troy Rossilho e, mais recentemente, Thiago Chavez. E mesmo em literatura, nos projetos desenvolvidos com Fabiano Vianna.

O Estado: Quais são as especificidades de produzir um texto dramatúrgico?

Claro que há técnicas e estratégias de composição, mas vão nesse ofício também fatores imponderáveis. No meu caso conta o endereçamento, para quem escrevo e a que tipo de provocação respondo. No mais, adoro ver o texto se levantando do papel, como se Frankenstein viesse ter no mesmo plano de Mary Shelley.

O Estado: Como acontece o seu processo criativo para compor uma letra de música?

Prefiro letras que nascem do convívio com os parceiros, de conversas inteligentes. Nós humanos nos expressemos por metáforas, analogias, de modo que há poesias órfãs por aí na fala das pessoas, pedindo existências mais cantáveis. Basta que estejamos abertos e as canções se agarram na gente.

O Estado: Como você analisa a produção literária em Curitiba?

Se olhamos trabalhos de Assionara Souza, Paulo Sandrini, Carlos Machado, Daniel Gonçalves, Fabiano Vianna, Otávio Linhares, Greta Benitez, Rodrigo Madeira, Edson Falcão, Fernando Koproski, Léo Glück, Sabrina Lopes, Alexandre França, Paulo Biscaia, podemos nos gabar de em Curitiba haver uma das melhores literaturas do País. Incluídos os mestres, Dalton Trevisan, Paulo Venturelli, Thadeu Wojciechowski, somando-se ainda Manoel Carlos Karam, Jamil Snege, Valêncio Xavier (que deixaram obras monumentais), aí não tem pra ninguém.

O Estado: Quais são as dificuldades de ser um escritor no Brasil?

Não só a dificuldade de sobreviver em termos práticos, em relação à moradia, comida, contas, etc, mas também a necessidade de superação do diletantismo, a coragem pra seguir mesmo sem certezas, agindo com fé na amplidão humana.

por PAULA MELECH
foto DANIEL CARON
originalmente publicada no jornal Estado do Paraná

Um diálogo sobre fotografia e efemeridade


Nos últimos anos, Elenize Dezgeniski tem se dedicado a investigar a fotografia de espetáculos a partir do diálogo entre a efemeridade das imagens cênicas e a suspensão das imagens captadas por sua câmera. O olhar da fotógrafa se fixa no visor e o dedo aperta o disparador quando encontra o instante preciso que reflete a escolha estética do trabalho a ser fotografado.

Atuando paralelamente como atriz, ela é consciente das possibilidades do seu meio: as duas profissões se encontram e, em um processo de troca mútua, se revelam uma à outra como cúmplices. Com suas imagens, Elenize vem nos propor a testemunhar o instante capturado em uma escolha essencialmente pessoal.

Um dos cuidados que ela tem é o de não se preocupar essencialmente com imagens belas, mas pensar na fotografia como uma extensão do espetáculo, onde o resultado deve estar em sintonia com a linguagem. Sua condição é precisamente a de reconhecer a natureza do afeto e do sofrimento, da música e da voz, do gesto e da imobilidade que permeia os trabalhos artísticos. Uma das principais fotógrafas de Curitiba, seu nome está regularmente situado nos registros das principais peças de teatro, dança e shows musicais da cidade.

Ela também é integrante da Obragem Teatro e Cia, onde atualmente trabalha no projeto Dossiê Buchner, contemplado pela Funarte no Prêmio Myrian Muniz. Ainda este ano, atua no infantil MMM - A montanha do meio do mundo e se prepara para a nova montagem do grupo, NOBORU. A fotógrafa ainda desenvolve um projeto para um livro de fotografias de espetáculos.
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Marcamos a entrevista na casa da Elenize, na rua Manoel Ribas no bairro Mercês. Um apartamento no quinto andar, com muitas plantinhas, alguns objetos antigos e uma luz da manhã entrando pelas espaçosas janelas.

O Estado - Como a fotografia e o teatro surgiram na sua vida?

Comecei muito cedo com a fotografia ajudando meu pai que também é fotógrafo. Foi ele quem me deu as primeiras noções lá pelos 12 anos de idade. No início eu o ajudava com a luz, depois passei a fotografar sozinha. Meu interesse em fotografar teatro surgiu durante a faculdade de artes cênicas. Em 2004, fotografei o espetáculo Bicho corre hoje, da Cia Senhas de Teatro, neste mesmo ano acabei fotografando para quase todas as companhias da cidade. As coisas aconteceram rapidamente, quando vi já estava com a agenda lotada de trabalho. Minhas primeiras experiências como atriz foram no Colégio Estadual do Paraná, onde estudei o segundo grau, participava do Grupo do Colégio e dos festivais de lá, depois me formei em Interpretação pela Faculdade de Artes do Paraná. Mas antes da fotografia e do teatro, estudei música por vários anos, referência que também influencia meu olhar.

O Estado - Como o trabalho como atriz influencia na sua atuação como fotógrafa?

O conhecimento da linguagem teatral que a profissão de atriz me dá, me faz entender como uma cena funciona estando dentro dela e
me dá o olhar de dentro. E quando estou com o olhar atrás da lente, o olhar de dentro faz combinações com o olhar de fora. É mais ou
menos assim que funciona para mim. Não basta fotografar um espetáculo apenas procurando imagens belas, é necessário que as fotografias dialoguem com as escolhas estéticas e linguagem do trabalho. Às vezes participo dos processos criativos de alguns espetáculos, discutindo cenas e fotografando ensaios, o que enriquece muito a configuração final das fotografias.

O Estado - Qual o tipo de preparo que você faz antes de fotografar um espetáculo?

Procuro saber do que se trata. Algumas informações são essenciais: conversar um pouco com o diretor e saber de onde partem as idéias das cenas me dão a primeira direção. Quando a luz acende e o espetáculo se inicia começo a construir as relações possíveis entre o espetáculo e as possibilidades da fotografia. Um bom alongamento também é bem vindo para preservar os punhos e a coluna. Existem também as companhias que eu fotografo há vários anos, como a Cia Senhas, o Grupo Delírio, a Obragem e no último ano pude acompanhar todo o processo do projeto VIDA, da Companhia Brasileira de Teatro, isso acaba me deixando mais próxima da estética e dos conceitos de cada grupo.

O Estado - Que pontos considera essenciais para que o resultado nas imagens seja fiel à encenação?

Existem duas particularidades a serem consideradas, uma é inerente ao teatro: a sua efemeridade, uma de suas características essenciais mais potentes. A particularidade da fotografia é a característica de congelamento de um instante; a suspensão. Isso torna impossível a idéia de fidelidade. Acho que existe mais um diálogo entre efemeridade e suspensão em constante negociação dentro das direções apontadas pelo espetáculo; da sua linguagem.

O Estado - Como você visualiza o ato artístico no trabalho de registro de espetáculos?

Acho que a dose de liberdade do fotógrafo de espetáculo se dá na autonomia de se fazer uma escolha, ele fotografa sozinho, só há espaço para um olho atrás do visor e ele decide o momento de apertar o disparador. É uma decisão extremamente pessoal. Se nesta brecha o fotógrafo quiser apontar alguma questão artística, um desdobramento ou um conceito, aí então pode ser considerado um ato artístico. Na maioria das vezes, a fotografia de espetáculo funciona como registro mesmo, mas em alguns casos é possível estar tão inserida em um processo que o trabalho pode ser considerado um ato artístico. Cito como exemplo minha experiência dentro do Grupo Obragem, onde as imagens são muito discutidas dentro dos processos, onde tive a oportunidade de trabalhar na elaboração das projeções do espetáculo Passos e do espetáculo O inventário de Nada Benjamim.

O Estado - Quais as suas referências na fotografia e nas artes visuais?

Nas artes visuais, em geral, gosto muito do trabalho da Rosangela Rennó e suas questões sobre o desaparecimento. No cinema, sou fã do Ingmar Bergman e na performance estou interessada pelo trabalho e pelas idéias da carioca Eleonora Fabião.

O Estado - Quais são os seus projetos para este ano?

Estou trabalhando com o Grupo Obragem em um projeto chamado Dossiê Buchner, contemplado pela Funarte no Prêmio Myrian Muniz. Este projeto envolve várias ações até setembro, também estaremos reensaiando o espetáculo infantil MMM - A montanha do meio do mundo e numa nova montagem do grupo chamada NOBORU, todos como atriz. Na fotografia, começo a organizar o projeto para um livro de fotografia de espetáculos.

Mais sobre os trabalhos no blog da Elenize.

por PAULA MELECH
foto DANIEL CARON
originalmente publicada em 11.04.2010

"Todos os que respiram, piram!"


A própria assinatura - com o q no lugar do c - já denuncia a multiplicidade do som feito pelo cantor e compositor Carlos Careqa em Tudo que respira quer comer, lançamento independente de seu próprio selo, BED -Barbearia Espiritual Discos.

O sexto disco do músico, que comemora seus 25 anos de carreira, será apresentado em show hoje, no palco do Teatro Sesc da Esquina. Como enfatiza Maurício Kubrusly no texto de abertura, o CD abre um leque de idéias-surpresa, de faixa a faixa: o álbum mantém a linha artística de Careqa, e associa humor ácido e lirismo poético em 14 faixas inéditas.

O cenário atual da música brasileira é colocado em questão na faixa-título do disco, que questiona Tudo que se ouve será música?. A proliferação de cantores e cantoras que utilizam a arte para satisfazer o próprio ego em detrimento da criação artística também aparece em Por quê?, onde o compositor coloca em questão a idéia de sucesso a qualquer custo: “Por quê você quer ser artista?/ Por quê você quer ser cantor?”.

O músico e ator, que nasceu em Santa Catarina, foi criado em Curitiba e escolheu São Paulo para viver desde 1991, acredita que muitas pessoas, não satisfeitas com o que fazem, procuram nas artes uma fuga, sem mesmo saber se têm ou não talento.

“O cenário musical brasileiro é constrangedor. Principalmente o que atingiu a grande mídia. Não se pensa mais na música, ou no texto. Simplesmente usam a música para ganhar uns trocados”.

Depois de gravar um CD em homenagem ao cantor norte americano Tom Waits, em 2008, Tudo que respira quer comer é uma sequência do segundo e terceiro discos - Música para final de século (1998) e Não sou filho de ninguém (2004) - e marca a sua retomada às canções.

O humor, uma das particularidades do músico, é compartilhado com convidados como a cantora Maria Alcina na faixa Que que ce qué? - que conta ainda com a participação do trombonista Raul de Souza - e parceiros antigos como Adriano Sátiro na letra da irreverente Vacamor -música em que Careqa divide os vocais com Zé Rodrix.

“Eu já tinha alguma coisa de ironia, mas também era muito romântico em relação às letras. Depois que conheci o Sátiro, ele me ensinou muita coisa. Digamos que ele me libertou deste romantismo e me pôs no caminho do bem, como ele mesmo diz. Com isso, ampliei esta minha capacidade de ironia e bom humor. Eu gosto desta linguagem, pois falamos de coisas sérias com muito humor”, diz.

Produzido por Mário Manga em parceria com o próprio cantor, o CD ainda recebe convidados como Raul de Souza (trombone), Mônica Salmaso (voz) , Marcelo Pretto (voz), Guello (percussão), Juliana Perdigão (voz), Gabriel Levy (acordeom), Toninho Ferragutti (acordeom), Chico Mello (piano), Tatiana Parra (Voz), Skowa (voz), Camilo Carrara (violão) e Fernando Vieira (voz).

Assim como Careqa, o artista plástico Guto Lacaz, que assina o projeto gráfico do disco e o fotógrafo Edson Kumasaka, autor das imagens do encarte, também buscam no humor um alicerce de trabalho.

Uma máscara de cabeça de cavalo utilizada em um espetáculo de Lacaz (O A e o U, encenado em São Paulo em 2008) serviu de inspiração para o projeto do CD e também está presente na composição plástica do show.

“Eu uso o cavalo para dizer que todos estamos carentes de ouvir e ser ouvidos. Todos os que respiram, piram!”. Na apresentação, ainda há uma citação do texto Música para reouvir, do músico Luiz Tatit, que trata da quantidade de músicas que ouvimos atualmente.

Para Careqa, a relação entre imagem e música não é importante somente na arte gráfica do disco ou na composição do show, mas atinge o impalpável. “Quando estou cantando e fecho os olhos fico imaginando. Penso na platéia, como será que eles estarão pensando esta frase em termos de imagem?”.

por PAULA MELECH
foto EDSON KUMASAKA
originalmente publicada em 26.11.2009

quinta-feira, 15 de abril de 2010

A arte híbrida do coletivo Couve-Flor


O nome de legume parte de uma ideia de fractal, onde cada pedaço fala do todo e o todo fala de cada pedaço. No Couve-Flor Minicomunidade Artística Mundial, a experiência individual de cada um dos sete artistas é colocada em contato criativo, convergindo para uma coletividade cada vez mais densa e multiforme.

Juntos desde 2005, Cândida Monte, Cristiane Bouger, Elisabete Finger, Gustavo Bitencourt, Michelle Moura, Neto Machado e Ricardo Marinelli criam um ambiente onde as trocas são bem-vindas e a investigação sobre a arte é constante.

O hibridismo de formatos é notável na atuação dos "couves": a dança contemporânea é permeada por questões das artes visuais, do teatro e da performance art. Outro ponto de interesse são as artes vivas, termo que sintetiza as artes que se estabelecem em uma relação presencial.

A porta verde com o número 266, na Rua Presidente Faria, indica o espaço onde tem se desenvolvido as atividades do coletivo. O Cafofo Couve-Flor é um espaço aberto a artistas independentes, propício para emergir as experimentações e o intercâmbio de idéias fora das instituições convencionais.

É lá, no Centro de Curitiba, que acontece o projeto Corpomeiolíngua Vol.2 que une exposição, performance, oficina e mesas redondas. A intenção é aproximar público, obra e artista e refletir sobre as conexões criativas que podem se instituir entre artes visuais, dança contemporânea e artes vivas.

Em nome do grupo, Gustavo Bitencourt recebeu a reportagem na varanda do Cafofo e falou sobre novas linguagens, ideias e ideais e o papel da arte e do artista do Couve-Flor.

O Estado do Paraná: Onde o Couve-Flor se localiza no cenário da dança contemporânea?

Gustavo Bitencourt - O Couve-Flor tem se relacionado com vários campos da arte, mas existe uma relação mais constante com a dança contemporânea e o teatro, em grande parte, devido aos nossos históricos profissionais. A maioria de nós têm formação em uma dessas áreas e um interesse particular pelo que estamos chamando de artes vivas.

Uma outra razão para essa aproximação mais específica com a dança é o fato de que, nesse campo, temos encontrado uma abertura considerável para a investigação, para a experimentação e para trabalhos e processos criativos que não se encaixam em outros lugares.

O Estado: Como aconteceu o encontro dos artistas que formam o coletivo?

GB - A maior parte de nós foi bolsista da Casa Hoffmann entre 2003 e 2004. Ser bolsista significava não apenas conhecer o pensamento dos vários artistas, teóricos e críticos.

A gente também assumiu um pouco a função de estabelecer um vínculo entre os trabalhos e os diversos tipos de pensamento que estavam se desenvolvendo na Casa e a arte produzida na cidade. No início de 2005, alguns desses artistas, que estavam começando a desenvolver um trabalho autoral, sentiram a necessidade de continuar sem esse vínculo institucional, buscando outros modos de criar, discutir a produção artística e se organizar. Foi desse jeito que a gente começou a se aproximar.

O Estado: Este ano, vocês foram contemplados com um edital de manutenção de grupos do Programa Petrobras Cultural de dois anos. Que ações pretendem realizar neste período?

GB - A função maior é possibilitar que a gente se mantenha vivo e trabalhando nesse período. A gente tem vivido, nesses últimos anos, basicamente com editais que financiam projetos de curta duração e, mesmo que algumas vezes com bastante esforço a gente tente estender essas criações e fazer com que elas reverberem por mais tempo, o fato é que o dinheiro costuma ter um destino específico, seja a produção de uma peça, de um evento, de uma série de eventos, de uma publicação, etc.

Esse projeto de manutenção agora prevê um processo de criação que vai se desenvolver ao longo desses dois anos, na primeira etapa com a participação de artistas que viriam a Curitiba não só para trabalhar conosco, mas também para compartilhar esse trabalho com a comunidade artística.

Na segunda etapa, para produzir e fazer circular o que surgir desse processo criativo. O que muda é que, ao invés de tentar viabilizar cada ação separadamente, a gente pode ter um plano de trabalho.

O Estado: O que muda no trabalho do Couve-Flor com este patrocínio?

GB - Me parece que isso nos dá uma certa segurança para continuar o trabalho que já estamos fazendo, sem o desespero das entressafras. O fato é que, mesmo quando não estamos desenvolvendo nenhum projeto financiado, continuamos pagando as nossas contas, não só as pessoais, como as coletivas, por causa da manutenção do Cafofo.

A grande vantagem de um edital de manutenção é levar em consideração necessidades como essa e permitir que a gente possa fazer um planejamento de vida por um período mais longo.

O Estado: Vocês citam o termo "artes vivas" como uma forma de arte que se estabelece em uma relação presencial. Podem explicar melhor do que se trata?

GB - Esse termo está também ocupando um lugar provisório, para tentar tampar o buraco que fica quando temos que explicar que tipo de trabalho fazemos. É sempre complicado quando alguém pergunta se a gente trabalha com teatro, ou dança, ou performance, porque na verdade os nossos interesses passeiam por tudo isso.

Quando falamos em artes vivas, estamos emprestando um pouco o sentido do que os franceses chamam de "arts vivants", se referindo às "artes do espetáculo" e também um pouco da ideia de "live art", um termo que tem sido usado no mundo todo, para tentar englobar todos esses trabalhos em que o acontecimento, o evento presente, é o mais importante.

O Estado: De que maneira as outras linguagens artísticas dialogam com o trabalho do coletivo?

GB - Acho que dá para dizer que a gente parte das artes vivas para tentar entender e se relacionar com as outras formas de fazer arte. E não só arte, mas também diversas outras áreas do conhecimento.

A gente tem sempre buscado o olhar de pessoas diferentes sobre essas questões que nos motivam, e é engraçado observar que perguntas muito semelhantes são feitas por gente que vem do teatro, da fotografia, da arquitetura, etc. Acho que isso tem enriquecido o nosso trabalho e fez com que cada um de nós, do seu jeito, começasse a se aventurar também em outras mídias.

Serviço

Para saber mais sobre os projetos do coletivo, o endereço é www.couve-flor.org.

por PAULA MELECH
foto ALESSANDRA HARO
originalmente publicada em 4.4.2010

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O som que vem do céu


O som da Nuvens é um dos mais inventivos e dinâmicos da atual cena musical curitibana. A fusão de ritmos denuncia a pluralidade da banda, que consegue unir maturidade sonora e experimentalismo em um trabalho que flerta com o folk, o rock e a música popular brasileira. Sem se limitar a uma única vertente, a banda aposta na diversidade rítmica com a mesma naturalidade que dialoga com outras esferas artísticas.

Essa fusão de elementos está estampada nos shows do projeto "Sarau nas Nuvens", que reúne música, poesia, artes visuais e performances circenses e no encontro com o teatro de sombras no espetáculo "Nuvens em Sombras".

A originalidade e o respeito pela música atestam que a Nuvens é a banda da vez. O primeiro disco homônimo, gravado em março de 2008, chegou a ser um dos mais vendidos no país. Eles também participam ativamente do movimento Música Para Baixar [MPB], para debater a nova realidade da indústria musical.

A Nuvens quer nos levar a tocar o céu com os pés no chão. Nesta entrevista, eles falam sobre a essência da banda, registrada no próprio nome.

O Estado: Como está sendo a experiência de ter o primeiro disco em circulação e que reflexos o CD causou na banda?

Amandio:Ter um disco gravado é como um filho que nasce, representa o resultado daquele momento da banda. A banda se formou durante as gravações. O Rapha começou tudo, e a galera foi entrando e terminando arranjos e cada um colocando o seu toque pessoal, então quando o CD foi finalizado a gente começou a viver o processo de shows como uma banda mesmo. Hoje as musicas do primeiro CD já evoluíram
de seus arranjos originais, mostrando que a banda criou uma identidade. Marcus: A gravação do CD criou a banda, pois ela nasceu dentro do estúdio gravando. Desde então já sofreu várias transformações, inclusive nos arranjos das músicas da CD e na forma de tocá-las. E com a experiência de tocar junto por esse tempo, nos desenvolvemos também coletivamente, criando uma identidade própria de grupo.

O Estado: Como aconteceu a escolha do repertório para compor o primeiro disco?

Amandio: Não foi muito fácil não, tínhamos mais de vinte músicas. É claro que havia algum consenso em algumas músicas que teriam que entrar no disco, mas em outros casos houve até votação. E ainda assim o disco acabou com 15 faixas , que é um número relativamente grande, principalmente para um disco de estreia. Mas tinha de ser assim.

O Estado: O trabalho da banda dialoga com o cinema, teatro, circo e artes visuais. De que maneira as outras vertentes artísticas influenciam no trabalho musical?

Raphael: As outras vertentes influenciam diretamente, pois são fontes de inspiração. Ao ver um filme, ler um livro, assistir uma peça é natural que nasça um processo criativo. Já que acreditamos que a arte além de ter um papel fundamental na sociedade, ela também é essencial para tocar a sensibilidade do homem abrindo-o e motivando novas percepções. Marcus: Creio que, além disso, quando surge na gente uma necessidade de inserir um algo a mais nos shows, estamos sempre abertos a novas experiências no que diz respeito a outras vertentes artísticas dialogando com nosso trabalho ao vivo.

O Estado: Onde vocês costumam ensaiar e com que frequência?

Amandio: Nós procuramos ensaiar sempre, pra manter o fogo aceso. Às vezes é apenas um ensaio para determinado show, às vezes é um ensaio com roteiro diferenciado como o espetáculo "Nuvens em Sombras" e às vezes são músicas novas. Nesse caso procuramos nos isolar em uma chácara ou algum lugar que possamos nos dedicar exclusivamente para aquelas músicas. Estamos inclusive vivendo esse processo criativo agora.

O Estado: No primeiro Sarau do ano, vocês divulgaram o MPB [Música para Baixar] e também disponibilizam canções para download. Como
vocês encaram essa nova forma de produzir música?

Raphael: Essa forma é uma nova realidade da história da música mundial. Estamos passando por uma revolução cultural e acreditamos que é fundamental dialogar e discutir a fim de entender cada vez mais o que vem a ser a música livre e o movimento Música Para Baixar. Nós que somos os representantes do MPB no Paraná acreditamos que o público e o apreciador de arte em geral têm um papel fundamental nesse nosso momento, já que ele pode modificar o mundo ao seu redor sendo um parceiro direto da banda, divulgando o trabalho seja no boca
a boca, seja na internet. Hoje o papel do mediador está acabando. Nós chegamos direto ao público, e o público direto em nós. E dessa forma ficamos mais independentes de antigas ferramentas de comunicação e ao mesmo tempo cada vez mais dependentes desse relacionamento saudável e construtivo com o público.

O Estado: Como foi a experiência com o projeto "Sarau nas Nuvens" e qual a expectativa para este ano?

Amandio: A experiência foi ótima, pois tivemos contatos com vários artistas locais, além de Carlos Careqa e André Abujamra, que nos honraram com suas presenças.

Marcus: Foi uma experiência interessante e bastante intensa. Pudemos descobrir e ter contato com diversos artistas, e também proporcionar uma experiência diferenciada para o público, que acreditamos que muitas vezes queiram sair para realmente consumir algo novo, seja música, literatura, artes visuais, ou qualquer outro tipo de arte. E com o trabalho pudemos desenvolver o evento, e para 2010 buscamos efetuar algumas mudanças para cada vez mais trazer um evento diferenciado ao público.

O Estado: Quais os próximos projetos da banda?

Raphael: Além do "Sarau nas Nuvens" temos um novo projeto em andamento que será bacana para a cena musical de Curitiba como um todo. O foco total é na nossa renovação artística, que resultará num espetáculo novo, que representará o novo momento da banda. Nele estarão algumas músicas antigas, mas também muitas composições novas. Será uma grande experiência, pois trabalharemos com o (diretor) Edson Bueno, que nos ajudará a lapidar a estrutura cênica desse show, que ainda esse ano rodará o país e se concretizará no nosso primeiro DVD e CD ao vivo.

Serviço:

O CD da Nuvens está disponível para download ou compra no site www.nuvens.net.

por PAULA MELECH
foto RODRIGO TORREZAN
originalmente publicada em 29.03.2010

A personificação de Macbeth


Daniel Dantas e Renata Sorrah alcançam o auge neste Macbeth revisitado: embora endosse a força da obra de William Shakespeare, o texto é tratado com uma linguagem direta - mas não menos poética - na tradução assinada por João Dantas em conjunto com o diretor Aderbal Freire-Filho.

Partindo de leituras de poesias e de diferentes traduções, esta visão da obra de Shakespeare resulta em uma encenação que sintoniza com o texto original e valoriza as metáforas da palavra.

A elegante representação de Freire-Filho se harmoniza com a mais curta e provavelmente uma das mais contundentes peças do dramaturgo inglês, que tem Daniel no papel-título e Renata como a manipuladora Lady Macbeth.

O espaço está livre para os atores trazerem à tona a discussão sempre atual entre poder e ambição, vingança e cobiça celebrada pela linguagem shakesperiana.

A concretização da montagem é a realização de um sonho antigo de Dantas: esse encantamento pelo dramaturgo contaminou o elenco, que se coloca transparente ao público em um trabalho essencialmente colaborativo. Daniel e Renata falaram à reportagem sobre a montagem que ocupa por dois dias o palco do Teatro Guaíra na Mostra 2010 do Festival de Curitiba.

O Estado: Porque escolheu montar esta equipe para a peça? Já tinha uma ideia de como gostaria que fosse a encenação?

Daniel: Montar uma equipe é sempre difícil. Nem sempre a gente consegue quem quer, porque as pessoas podem não estar disponíveis, não se interessarem, mil razões. Mas nesse caso, desde o começo demos uma sorte enorme.

Conseguimos o que queríamos, ou melhor. Eu, Maria Siman (produtora do espetáculo, que foi fundamental), Renata e Aderbal tínhamos uma coisa na cabeça, o tempo todo: formar um elenco e uma equipe de primeira. Formamos. Eu brinco sempre que todos eles são meu "dream team".

O Estado: Como foi a preparação e o processo de pesquisa do espetáculo?

Renata: Ler, ler e ler. Ler poesias. Ler poemas do próprio Shakespeare. Ler textos que escreveram sobre ele. E ler todas as traduções que já foram feitas. Depois, a entrega, os ensaios, as possibilidades, se livrar das idéias já concebidas sobre os personagens. Deixar a imaginação solta, livre.

Entender e sentir a linguagem densa e exuberante de Shakespeare. Não ter medo de tocar o fantástico e se entregar ao Aderbal (Freire-Filho) e aos meus colegas para juntos formarmos uma trupe.

O Estado: Como é pensado o trabalho de ator nesta peça?

Renata: Posso falar por mim, como foi o meu processo. Primeiro - Pânico, medo de enfrentar a Lady Macbeth. Depois, o deslumbramento pelo texto, pela poesia, pela genialidade de Shakespeare.

Tentei entrar num vácuo particular e a partir daí deixar um espaço vazio para construir a minha Lady Macbeth. Não ter idéias preconcebidas. Aprender e trocar com Aderbal (Freire-Filho) e meus colegas.

Os personagens de Shakespeare exigem uma grande energia mental, física e principalmente coragem. Poder experimentar tudo nos ensaios para depois fazer as escolhas.

Daniel: Todos os atores fazem mais de um papel, exceto Renata e eu, e todos nós fazemos alguma contra-regragem. A gente funciona meio como uma trupe, e cada um "veste" o personagem abertamente, na frente do público.

Um dos maiores elogios ao espetáculo foi de um diretor de teatro, que disse ter sentido claramente essa "vibe de grupo". É um dos meus orgulhos, na montagem.

O Estado: Como é circular com o trabalho e perceber as diferentes reações do público?

Renata: É muito enriquecedor viajar pelo Brasil levando um espetáculo. São platéias tão diferentes. Muitas vezes você faz descobertas sobre uma única frase pela reação da platéia e, se você tem essa diversidade de platéia, você aprende muito.

Por isso o teatro ganha do cinema e da televisão. O teatro precisa do ator, de um espaço e do espectador. A chegada do público é a complementação do processo. Um espetáculo acontece quando o ator e a platéia dividem pensamentos e emoções. E dividir essas emoções com as mais diferentes platéias é muito estimulante.

O Estado: Quais as similaridades e diferenças entre Macbeth e Lady Macbeth?

Renata: Ambos são ambiciosos. São arrogantes, obcecados pelo poder e mais tarde percebem a inutilidade do crime que praticaram. Lady Macbeth diferencia-se de Macbeth pela sua inabalável firmeza, coragem, auto-controle e firmeza nos seus propósitos.

Para ela não há distância entre vontade e ato. Já Macbeth hesita, tem medo, duvida. Isso tudo nas cenas iniciais. A partir de um ponto a evolução dos dois personagens muda.

Daniel: Eles são complementares, acho. Eles funcionam muito como casal. São complementares, mas não de um modo fixo, com papéis rígidos. Ele vacila, ela avança; ela teme, ele age; ele sofre, ela planeja.

Acho que os casais tendem a funcionar exatamente assim, e vão ficando parecidos nos diversos papéis. Macbeth e Lady Macbeth são dois personagens terrivelmente humanos, e humanamente terríveis.

O Estado: Como está sendo a experiência de trabalhar com Daniel Dantas?

Renata: Eu já tinha dividido Shakespeare com Daniel Dantas, quando fizemos juntos Noite de reis - uma comédia. Muito bom dividir agora com ele o casal mais apaixonado da tragédia. Daniel é um grande ator, de uma inteligência cênica rara. Estamos sempre vivos e entregues em cena. É um prazer trabalhar com ele.

O Estado: Como é trabalhar com Renata Sorrah?

Daniel: Já tínhamos estado numa mesma novela, muito tempo atrás. Minha primeira novela, na verdade. Mas não nos encontramos muito. E mesmo assim, eu tinha enorme simpatia por ela.

Quando fizemos o Noite de reis, há poucos anos, eu fiquei completamente encantado com ela. Além da atriz excepcional, Renata é das melhores pessoas que existem para se conviver.

por PAULA MELECH
foto NANA MORAES
originalmente publicada em 21.03.2010

Um cineasta antenado com o mundo


Marcos Jorge é surpreendente. Ele escolheu o cinema com o desejo de unir todas as artes em um só lugar e acertou. O filme de estreia do diretor curitibano, Estômago (2007) reflete a delicadeza com que ele trata a linguagem cinematográfica que o consagrou como um dos mais importantes realizadores brasileiros.

Em um universo delimitado pela gastronomia, Estômago caiu nas graças do mundo. Vencedor de 36 prêmios nacionais e internacionais, o primeiro longa do diretor já foi exibido em 27 países e agrada a crítica e o público com o mesmo nível de intensidade.

Exageros à parte, Marcos está relativamente acostumado com as consagrações - tanto dirigindo filmes publicitários como no trabalho autoral. Seu primeiro curta-metragem, O encontro (2002), figura como um dos mais premiados do País. O segundo, Infinitamente maio (2003), recebeu 17 prêmios em festivais nacionais.

Na sala lotada de livros, discos e DVDs, Marcos recebeu a reportagem em seu apartamento no 15º andar de um prédio no centro de Curitiba.
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O Estado: Onde você se localiza no cenário da produção cinematográfica brasileira?

Marcos Jorge - É uma pergunta um pouco delicada, já que, na minha opinião, não cabe ao próprio artista se localizar no cenário onde atua, mas aos jornalistas e críticos que comentam e refletem sobre seu trabalho. A revista americana Variety, numa edição de 2008 saída logo depois do lançamento do Estômago no Brasil, listou o meu nome entre os dez novos cineastas brasileiros mais relevantes. O crítico Luiz Carlos Merten, do Estado de São Paulo, ao comentar o lançamento nacional do Estômago, escreveu, com certo exagero, que com este filme eu estava colocando o Paraná no mapa da produção cinematográfica brasileira. Exemplos assim me fizeram ser otimista sobre meu trabalho, é claro, mas acredito que os indicadores mais felizes foram os prêmios da Academia Brasileira de Cinema e da Associação dos Correspondentes Estrangeiros no Brasil (equivalentes brasileiros do Oscar e do Globo de Ouro) que me escolheram, ambos, como o melhor diretor do ano passado. Agora, se você quer mesmo a minha opinião, posso dizer onde "quero" me situar: quero fazer um cinema brasileiro antenado com o mundo.

OE: Como você analisa a cena da realização cinematográfica em Curitiba?

MJ - A cena cinematográfica curitibana (poderíamos dizer paranaense) é de uma incrível vitalidade, especialmente considerando-se o pouco estímulo existente no Estado para esta atividade. Temos vários diretores talentosos e batalhadores, e se poucos aparecem nacionalmente é porque a vitrine maior, a do longa-metragem, exige investimentos que nossos órgãos públicos e empresas privadas não têm sabido (ou desejado) realizar. Em âmbito municipal, os editais e a lei de incentivo conseguem fomentar a produção de curtas, no máximo, e não têm sequer um mecanismo mínimo de estímulo à produção do longa (como existe em São Paulo e em várias outras capitais). Para piorar, as estatais e empresas particulares sediadas no Paraná ignoram (com raríssimas exceções) quase completamente a produção local, preferindo confiar suas verbas de renúncia fiscal a produtoras do eixo Rio-São Paulo.

OE: Como foi a experiência do seu primeiro longa de ficção, Estômago, ter sido consagrado em diversos festivais de cinema no Brasil e no exterior?

MJ - A consagração em festivais é muito bacana, claro, e mas quanto ao Estômago devo dizer que o mais relevante para mim foi seu sucesso junto ao público. No Brasil, mesmo sem ter tido nenhuma verba de divulgação, alcançou um público amplo (e que agora vai crescer bastante pois o filme foi recentemente adquirido pela Rede Globo). Agora, no exterior o fenômeno foi muito maior. Em abril o filme será lançado em Portugal e, em maio, na França, completando quase três dezenas de países onde o filme foi lançado nos cinemas.

OE: Qual é a expectativa com o longa Corpos celestes, exibido no último Festival de Gramado?

MJ - A expectativa é a mesma do Estômago, não no sentido de que espero que ele tenha o mesmo sucesso, mas de que ele encontre seu público. E isso, acredite-me, não é fácil, exige trabalho e investimento.

OE: De que maneira o trabalho com publicidade influencia a linguagem de sua obra para o cinema?

MJ - O cinema publicitário é fundamental para minha vida profissional. Ele não só me permite viver dignamente de minha profissão de "diretor de filmes", como me mantém constantemente "treinado" para as tarefas de enquadrar, decupar, dirigir atores e tocar um set. Eu adoro filmar, e a publicidade me dá a chance de fazer isso sempre, e não a cada dois ou três anos, coisa que aconteceria se eu fizesse somente filmes para o cinema. Do ponto de vista da linguagem de meus filmes, acredito que o exercício com a publicidade me ajuda a definir uma linguagem de comunicação direta com o público, o que é bem bacana também quando se está fazendo um longa.

OE: Quais filmes você considera essenciais?

MJ - Todos aqueles que me dão prazer ao vê-los. E falo "prazer" num sentido amplo, que é sim divertimento, mas também prazer estético, intelectual, emocional. E é melhor ainda se este prazer for acompanhado de uma boa dose de reflexão sobre a condição humana. Assim, tenho muitos "filmes essenciais" em minha lista.

OE: Que cineastas te influenciam?

MJ - Muitíssimos. Mas, se você precisa mesmo de uma lista, vou colocar alguns, esquecendo a maioria: Fellini, Kusturica, Leone, Paradjanov, Scorcese, irmãos Cohen, Kubrick, Hitchcock, Coppola, Herzog, Meirelles...

OE: Como você vê o fechamento de locais para exibição de filmes de arte em Curitiba, como aconteceu com o Cine Ritz e, mais recentemente, com o Cine Luz?

MJ - Lamentável, não? Mas, de qualquer maneira, sinais dos tempos que correm.

OE: O que você considera um dado novo neste momento da produção cinematográfica?

MJ - Há vários, inclusive contraditórios neste momento na produção cinematográfica mundial. Enquanto por um lado vemos o sucesso do 3D e de filmes como Avatar, assistimos ao sucesso de filmes pequenos e independentes, como Guerra ao terror. Para onde vai o cinema, para qual lado? Eu acho que para todos, como sempre.

OE: Quais nomes você destaca na atual cena cinematográfica brasileira?

MJ - Beto Brant, Sérgio Machado, Marcelo Gomes, Breno Silveira, Karim Ainouz, Heitor Dhalia, Laís Bodanski, entre outros.

OE: No que está trabalhando agora?

MJ - Meu próximo filme, provavelmente, será o Dois sequestros, que acaba de vencer um edital da Petrobrás. As motivações que me levaram a conceber este filme (juntamente com Lusa Silvestre, meu parceiro também no roteiro do Estômago) derivam de uma longa reflexão sobre a justiça e a vingança e sobre os limites de ambas. Dois sequestros será um drama psicológico, e embora narre fatos de violência, não terá nenhuma cena de violência explícita.

por PAULA MELECH
foto DANIEL CARON
originalmente publicada em 14.03.2010

Intervenções necessárias


Às vezes, é preciso somente um olhar mais atento para descobrir a cidade como cenário para obras de arte. Na tentativa de ler e redimensionar esse espaço, as intervenções urbanas do artista visual Tom Lisboa exigem rigorosamente a participação do espectador, que compartilha o campo da obra e a desvenda a partir de múltiplas perspectivas.

A ação performática do artista está em sintonia com as suas diversas áreas de atuação: ele tem projetos em fotografia, pintura e videoarte e é professor e pesquisador de cinema. Na área audiovisual, Tom ainda é o criador do principal cineclube da cidade, o Contramão.

Todo um novo circuito - independente das necessidades funcionais da cidade - é criado pelas intervenções, que redimensionam a percepção e a experiência deste território urbano. Com uma ocupação poética dos espaços, o seu trabalho é fortemente influenciado pelo cinema, como é o caso das obras Blow up - baseada no filme homônimo de Michelangelo Antonioni - e Mirando(a), inspirada em Miranda July e seu filme Eu, você e todos nós.
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Em entrevista ao O Estado do Paraná, Tom Lisboa fala sobre o processo para criar uma obra que dialoga com os espaços urbanos e redesenham o mapa da cidade.

O Estado: Qual o papel das intervenções urbanas na arte contemporânea?

As intervenções urbanas concretizaram algo que a arte contemporânea "de museu ou galeria" buscava há um bom tempo: ir ao encontro do grande público, muitas vezes não iniciado no circuito artístico mais elitizado. Outro fator que chama a atenção é sua liberdade criativa. Como este tipo de manifestação é, na maioria dos casos, espontânea e produzida à margem dos interesses de mercado, os artistas podem investir mais na experimentação e ousadia de seus trabalhos. Não é à toa que as instituições oficiais estão cada vez mais interessadas em incluir esta "arte marginal" em seu acervo.

O Estado: Quais são as principais questões conceituais aplicadas em trabalhos de intervenção urbana?

Eu procuro explorar a questão da representação, um conceito que é tanto da arte quanto da própria cidade. A cidade, independente de seu tamanho, é uma intervenção legitimada. O espaço urbano é a concretização de uma ideia que, entre outras coisas, estratifica os indivíduos socialmente, interfere em nossos percursos, desperta reações emocionais e provoca nosso olhar. A cidade e a arte tem em comum esta vocação criadora e transformadora.

O Estado: O que te motiva a criar uma obra de intervenção?

Quase todas as minhas intervenções necessitam de uma postura ativa do espectador. Eu preciso que ele interaja com minha obra para que o resultado "apareça". Particularmente, eu gosto de incentivar este jogo entre o autor e o espectador. Talvez, por isso, eu idealize intervenções que são, em certa medida, lúdicas tanto na forma quanto no conteúdo. Intervenção para mim é um jogo que deve ser agradável e que, ao mesmo tempo, estimule a percepção e a sensibilidade do público.

O Estado: De que maneira as outras artes interferem e se relacionam com suas intervenções?

No meu processo criativo eu procuro valorizar a diversidade das minhas referências. Neste sentido, estou sempre renovando meu repertório em várias áreas, tais como literatura, cinema, música, fotografia, design, moda e televisão. No final, algumas influências acabam sendo mais importantes que outras, mas tudo depende do projeto. Por exemplo: eu ter assistido ao desfile das roupas de papel do Jum Nakao foi fundamental para eu criar as Polaroides (in)visíveis e o filme Eu você e todos nós, da diretora Miranda July, foi o ponto de partida para a intervenção Mirando(a).

O Estado: Como as intervenções são influenciadas - ou influenciam - a relação das pessoas com os grandes centros urbanos?

Entre os vários significados da palavra intervir encontramos o termo surpreender. A intervenção "toma de assalto" o transeunte e propõe que ele veja algo de modo distinto, que preste atenção ao que está ao redor. Esta talvez seja a maior influência: ampliar nossa sensibilidade perceptiva. Uma frase do Marcel Proust explica muito bem esta situação: "Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade do nosso pensamento em relação a elas". Não existe nada estático ou imutável. Tudo pode ser recriado apenas pela maneira como percebemos as coisas.

O Estado: Quais são as particularidades de um trabalho que ocupa um espaço público se comparado às obras que estão em espaços institucionais?

Uma das coisas que aprendi com as intervenções urbanas é o desapego à obra. Uma vez colocada na cidade, você perde o controle sobre sua criação. E é muito bom poder exercitar este sentimento. Por isso minhas obras são facilmente removíveis. Meu desejo é que as pessoas possam colecionar estes trabalhos, levá-los para casa, se assim desejarem. Para minha surpresa, eu volta e meia descubro, acidentalmente, que isto tem acontecido de fato.

O Estado: Quais são os seus próximos projetos?

Estou lançando agora em março mais um projeto de mobilização criativa chamado Caractere(s): Retratos em preto e branco. Nestes últimos três anos quase 400 pessoas participaram destas mobilizações. Eu chamo mobilização criativa porque o público participa ativamente da criação das obras que vão ser expostas em algum espaço, que pode ser na internet, na rua ou em uma galeria. Além disso, vou dar continuidade a outros trabalhos coletivos como a ação urbana Lugar (que já foi feita por 50 pessoas, em 18 cidades, de 5 países), os desenhos dos fios de Curto Circuito e expandir a intervenção Polaroides (in)visíveis para o interior do Paraná.

Serviço

Quem quiser se informar sobre os trabalhos de Tom Lisboa pode visitar sua página pessoal no endereço www.sinTOMnizado.com.br/tomlisboa.

por PAULA MELECH
foto DANIEL CARON
originalmente publicada em 07.03.2010

Thadeu Wojciechowski é um homem das letras


Por vezes, o seu ritmo é tão turbulento que fica difícil acompanhar todos os passos de Thadeu Wojciechowski. O sujeito das letras deixa transparecer o multifacetado artista que escolhe a arte para enxergar o mundo: é poeta, compositor, publicitário, professor de literatura e língua portuguesa. O homem ainda arruma tempo para tocar um blog, o Polacodabarreirinha's.

O curitibano de quase 60 anos é inquieto - tem 27 livros editados, 12 por editar e mais de mil canções com cerca de 50 parceiros. Os números dão uma boa medida para o tamanho das ambições do artista.

Preenchendo tudo com delicadeza, o Polaco da Barreirinha, como é conhecido, pensa na música e na literatura como uma extensão natural de sua vida. No departamento sonoro, ele compôs mais de 120 canções com Octávio de Camargo e Bárbara Kirchner, além de cultivar parceiros como Walmor Góes e Carlos Careqa.

Cheia de camadas, as sílabas se enroscam e tecem um painel criativo e bem humorado na sua vasta produção literária. É aqui que ele convoca Saboro Nossuco, alter ego que assina o último livro Koan do como onde (2009). Thadeu recebeu a reportagem para um bate-papo regado a café em sua casa, no bairro Barreirinha, em Curitiba.

O Estado: Como você vê o cenário da literatura em Curitiba?

Curitiba faz uma poesia de alta voltagem e de muita qualidade. Além de ser a capital mundial do rock, a cidade tem muitos e bons poetas e é referência para todo o Brasil.

A nova geração herdou um patrimônio magnífico e está fazendo excelente uso dele. Uma pena que a mídia dedique tão pouco espaço à cultura e ao que rola na cidade. Creio que se não fossem os blogs muita coisa permaneceria inédita.

O Estado: O seu processo criativo acontece de forma deliberada ou você organiza um tempo do seu dia para produzir?

Um pouco de cada. Chega um amigo, a festa começa e não tem hora para acabar. Lá pelas tantas, é fatal que a gente comece a fazer uma nova canção ou coisa que o valha.

Poesia é conversa entre pessoas inteligentes, então qualquer assunto pode se transformar em motivo para se cometer um poema ou uma letra. Mas claro que tem os momentos em que escrevo sozinho. E como escrevo! Quem acompanha o meu sabe muito bem disso. Sou um terrorista.

O Estado: Você se lembra do momento em que a poesia surgiu na sua vida? Como foi?

Muito cedo, tão logo comecei ler e a escrever. Minha mãe declama muito bem e despertou em mim o gosto pela poesia. O Augusto dos Anjos foi o primeiro poeta que me chamou a atenção. Minha mãe declamava Versos íntimos e eu achava aquilo maravilhoso. De lá pra cá, ainda mantenho o mesmo ídolo.

O livro Eu, pra mim, é uma jóia rara da poesia universal. Depois vieram Machado de Assis, Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, Nelson Rodrigues, poetas diferentes e que quase não escrevem ou escreveram em versos.

Mas fazem ou fizeram poesia de alta voltagem. Na música , também tive uma influência muito forte, acho que virei compositor no mesmo dia em que ouvi o Jimi Hendrix pela primeira vez. O cara abriu o mundo para mim.

O Estado: Que motivações o levam a escrever?

O prazer principalmente e acima de tudo. Quando escrevo um texto ou faço uma música que eu gosto, isso me dá uma enorme alegria. Esses dias a atriz Claudete Pereira Jorge foi lá em casa e me encomendou uma peça de teatro.

Ela precisava do texto pronto em três dias. Eu nunca tinha escrito nada para o teatro, mas sentei e escrevi. E gostei do que li depois. Acho que motivação maior do que gostar do que faz não existe.

O Estado: Como a música apareceu na sua vida e qual a relação dela com o seu trabalho literário?

Acho que já respondi a uma parte dessa pergunta, mas acho que tem tudo a ver. É muito tênue a linha que separa um poema de uma letra. Há alguns anos, eu escrevi um poema chamado Vida e jamais o imaginei como letra.

No entanto, o Ulisses Galleto o musicou e o Guilherme Dias o transformou em história em quadrinhos. Você põe um poema no mundo e ele cai na vida, não está nem aí pra você. Essa é a coisa mais gratificante.

O Estado: Como é o seu processo criativo como letrista? Você precisa ser guiado pela melodia da canção ou é a própria letra que dá direção à música?

Os dois. Às vezes, eu faço a música inteira em questão de segundos. Ás vezes demora e tenho que sentir para onde caminha a melodia. Eu e o Octávio, somos espartanos na hora de compor. Vamos encaixando sílaba a sílaba.

A formação clássica dele nos moldou a compor dessa maneira. Já com o Walmor Góes a coisa é mais explosiva, normalmente resolvemos rapidamente as canções. Talvez pelo tempo que a gente compõe junto, são mais de 30 anos.

O Estado: Geralmente você trabalha com amigos ou também surgem parcerias com pessoas que você não conhece?

O pessoal vai lá em casa e a gente faz. Não é nada planejado, é como respirar. Você está conversando alegremente e em paz, então todo mundo fica criativo. Não faço música só com poetas.

Eu tenho dezenas de parcerias com pessoas que não escreveram absolutamente nada. Mas qualquer pessoa tem poesia dentro de si, acho que tenho um talento especial para fazer aflorar essa coisa.

O Estado: Que músicos ouve e o que anda lendo ultimamente?

Tom Waits, Carlos Careqa, Maxixe Machine, Alexandre França, o Jimi eu nunca deixo de ouvir. Estou sempre recebendo CDs e DVDs, tem muita gente boa por aí. O Careqa fez um CD com adaptações das letras do Tom Waits, este é o meu preferido já faz algum tempo, há um ano pelo menos. Sou obsessivo, escuto mil vezes a mesma coisa. E com livros também, leio até decorar tudo que eu gosto.

No momento estou relendo toda obra do Nelson Rodrigues, acho que é a enésima vez. Sei lá. Mas sou apaixonado pelo estilo dele. Quanto mais leio, mas eu gosto. É como o Kurosawa e o Augusto dos Anjos na minha vida.

Não sei te afirmar quantas vezes vi os filmes Sonhos, ou Sete samurais, Ran, Kagemusha, Dersu Uzala, Madadayo, assim como não sei dizer também quantas vezes li o Eu. Eu gosto de rever tudo que me impressionou algum dia. O Catatau, do Leminski, não sai do meu banheiro.

Serviço

Conheça mais sobre Thadeu Wojciechowski no blog www.polacodabarreirinha.wordpress.com

por PAULA MELECH
foto DANIEL CARON
originalmente publicada em 14.02.2010

A dança reinventada de Gládis Tridapalli


Gládis Tridapalli tem colocado cada vez mais sua pesquisa em um lugar de interação com diferentes áreas da vida e do conhecimento. Interessada sobretudo no potencial das situações, a bailarina equilibra a teoria e a prática, a criação e a educação para deixar o corpo se inscrever naturalmente nas dinâmicas da dança contemporânea.

Essa dança na qual Gládis está inserida sublinha a aproximação e o revezamento com diferentes áreas artísticas, desestabilizando a mecânica de movimentos repetitivos, ensaiados, cumulativos. Cada circunstância é tratada por ela com a mesma medida de encantamento, seja atuando como professora nas salas da Faculdade de Artes do Paraná (FAP), realizando um trabalho solo ou colaborando com projetos alheios.

Os trabalhos da artista - mesmo que não diretamente - são contaminados pelo modo de narrativa não-linear presentes do cinema e da literatura. A busca aqui é por uma produção de sentido que se apresente como uma rede complexa, ambígua e instigante de sentidos.

A dança, para ela, emerge de questões que envolvem problemas e vontades, e a procura pela resolução dessas situações abrem o leque de atuação do seu trabalho. "A arte nos dá a possibilidade de elaborarmos mundos possíveis e de refinarmos o olhar".

Gládis falou por quais caminhos anda a dança contemporânea e sobre os impulsos que a movem em direção à ela.

O Estado: De onde geralmente parte o impulso criativo para um novo trabalho de dança contemporânea?

São impulsos de vida. Muito do que estou vivendo no momento, vivi, ou gostaria de viver no futuro. Muito do que vejo também. A arte nos dá a possibilidade de elaborarmos mundos possíveis e de refinarmos o olhar. O olho se volta para a gente mesmo, para o corpo e para o mundo e no meio de tudo isso, a arte é a tentativa de arranjar alternativas para reinventar e se reinventar. O impulso criativo surge quando algo incomoda, inquieta ou quando presto atenção em algo que pode ser simples do cotidiano, que inclui também olhar para a rotina da dança/corpo que tenho. A rua é sempre um lugar em que tenho ideias também. Gosto de caminhar, errar os caminhos e também observar, observar o comportamento/lógica das coisas, da natureza, dos outros e o meu também.

O Estado: Como é para você fazer um trabalho solo de dança contemporânea? E como é dividir o palco com outros artistas?

O solo é sempre um parto difícil na hora de mostrar. No entanto, no solo, por mais que haja colaboração de outras pessoas, gosto muito do processo, pois se tem mais liberdade para intensificar o teste dos experimentos e selecionar o que vai para cena. No entanto, criar em grupo é um grande e árduo exercício de escuta, de generosidade e da ética. E na hora H da temporada é muito bom contar com os outros. As parcerias, tanto no De maçãs e cigarros, com - Ronie (Rodrigues), Mapi (Mábile Borsatto) e Dani (Daniella Nery) e no Próximas distâncias, com Candice (Didonet), foi muito bacana. Deu para realmente dividir responsabilidades, lidar com os conflitos e também sentir prazer, se encantar com a existência do outro. Isso é fundamental para mim num projeto.

O Estado: Quais das outras artes mais influenciam nos seus trabalhos? De que maneira?

Cinema e a literatura. Não sou uma entendida de cinema, nem de literatura. Fiz Letras e Jornalismo um tempo, o que me ajudou, mas nunca estudei a fundo nenhuma dessas áreas. No entanto, tenho a mania de observar o modo como as narrativas/dramaturgias no cinema e na literatura se dão e fico impressionada. Alguns filmes e livros me mostram, o que muito procuro na dança, que é uma produção de sentido que se distancia da linearidade e se apresenta sim como uma rede complexa, ambígua, instigante de sentidos. Nem a literatura nem o cinema estão diretamente presentes nos meus trabalhos, nunca decidi, "agora vou fazer um diálogo com o cinema ou a literatura", mas me contaminam sim. Ultimamente tenho me interessado pela pintura também, acho que decorrência da busca por entender sobre as imagens internas e externas que o corpo pode produzir como modo de comunicação.

O Estado: Como o seu trabalho como professora de dança da Faculdade de Artes do Paraná interfere nos seus projetos?

A faculdade de artes do Paraná é um lugar em que posso testar muitas coisas e os diálogos entre a criação e o ensino naturalmente emergem, porque afinal estamos numa faculdade de artes. Os temas dos projetos artísticos não se tornam diretamente aula na Faculdade, mas sou uma pessoa só, e quando a gente está criando, ficamos diferentes e isso invade os outros lugares. A articulação fica mais rápida, as idéias fluem e os alunos como especiais pesquisadores embarcam nessa e essas experiências modificam, alimentam os projetos. O que fica da FAP também é o estudo do mestrado que fiz em Salvador e que muito pulsa e impulsiona a criação.

O Estado: Como você cuida do seu corpo?

Eu danço quase todos os dias. Faço aula sozinha e as vezes em grupo. E as aulas incluem propostas de consciência corporal, improvisação e também de resistência, fortalecimento, velocidade. Caminho bastante e escolho caminhos verdes. A alimentação é legal, muita verdura, fruta, amido integral e pouco açúcar. Não como carne vermelha. Sinto que as questões do corpo também estão relacionadas com estar envolvida na realização de coisas que importam para mim. Fica tudo mais saudável, potente, a respiração leve, a energia flui.

O Estado: O que você gosta de ver em uma peça de dança?

Gosto de me sentir participando na construção da dramaturgia, gosto de sentir que ao mesmo tempo há uma construção do artista proponente, mas há espaço para eu jogar junto, refletir, pensar sobre, me desestabilizar também. Curto uma peça de dança quando ela apresenta uma pesquisa de linguagem diferenciada e aprofundada na qual fico pensando: "como será que isso foi feito? Que legal! Nunca tinha pensado assim!" Gosto de sacadas, surpresas e um bom, inteligente e particular desenvolvimento delas.

O Estado: Quais são os seus próximos projetos?

Agora estou pensando nos projetos que já realizei em 2008 e 2009. Quero poder amadurecê-los, experimentar com calma, dançar mais vezes, esticar as parcerias, circular em outras cidades. No entanto questões novas podem surgir dessa vontade, daí então cabe um projeto novo.

por PAULA MELECH
foto DANIEL CARON
originalmente publicada em 28.02.2010

Os múltiplos olhares da atriz e diretora Olga Nenevê


Uma das principais referências no teatro curitibano, Olga Nenevê sintetiza a liberdade do olhar em imagens que revelam ecos das artes plásticas, cinema e dança. A atriz e diretora cruza as fronteiras artísticas e coloca o corpo como suporte de um teatro sensível às problemáticas do homem urbano.

À frente da Obragem Teatro e Cia, Olga ocupa as manhãs da semana com o processo de pesquisa do projeto Dossiê Büchner - baseado no dramaturgo alemão George Büchner.

A sede da companhia, no bairro Rebouças, é tomada por ações e experimentações que partem do conceito de oposição para se transformar em movimento.

A oposição com o estado sedimentado de ideias a levou a se tornar uma das encenadoras mais inventivas de sua geração, surgida nos anos 90. O percurso que vem sendo maturado desde os seus 20 e poucos anos é de um teatro "capaz de afetar os sentidos das pessoas e de levá-las à ação". Com palavras atenciosas, Olga compartilhou um pouco das suas experiências:

O Estado: Como você se localiza no cenário teatral curitibano?

Caramba! Acho que a gente faz escolhas e elas determinam posições. Sou uma artista que integra um grupo de teatro atuante; que desenvolve uma linguagem particular e que se posiciona com seus trabalhos. Junto com o artista Eduardo Giacomini reconheço meu papel histórico na cidade, uma vez que trabalho para a construção de uma forma transformadora de teatro.

O Estado: De que maneira você enxerga o trabalho da Obragem no cenário teatral brasileiro?

A Obragem é um grupo que acredita na continuidade de pesquisa de linguagem e nesse sentido, está conectada a muitos outros grupos do país. A contaminação com outras áreas de atuação artística e o interesse por assuntos da vida urbana torna a Obragem um grupo engajado nas questões da cidade, do estado e do país. O grupo vem articulando a comunicação com outros artistas, intelectuais e diferentes públicos com o intuito de criar um ambiente propício ao diálogo.

O Estado: Artes visuais, cinema e dança: como essas influências interferem no seu processo de criação?

É um mistério como o processo cria arranjos e encontros entre as coisas. Gosto de trabalhar a partir do conceito de oposição e com tudo misturado o tempo todo. Vou relacionando os conceitos, mudando de lugar e experimentado e, de repente, tenho na sala de ensaio uma pilha de livros, músicas, filmes e tudo se transforma em movimento.

Mas, também, tento desequilibrar, a cada novo trabalho, algumas estruturas. Gosto de sentir a tensão necessária para um estado de alerta mais vivo, durante os ensaios.

O contato com outras áreas, e não só artísticas, acabam por me deixar cheia de problemas, que é o que eu gosto, quando estou num processo criativo. E, o teatro é o espaço livre que me possibilita circular por diferentes áreas.

O Estado: Como você vê o fenômeno de diretores que também escrevem?

Penso que está relacionado a um posicionamento político, porque o artista assume um modo de ver o mundo e as suas relações a partir de um conteúdo e uma forma que materialmente passam a existir.

Mas, também, isso acontece mais freqüentemente nos processos colaborativos de grupos que desenvolvem trabalho continuado, em que a organização orienta para o que você está chamando de fenômeno. As questões emergem de um ambiente com determinada configuração e linguagem.

O Estado: Quem são as suas influências no teatro e em que ponto elas mais interferem?

Caramba! As influências vêm de diferentes áreas e diferentes tempos da minha vida. Trabalho de uma forma muito misturada, porque atuo e estudo diferentes formas de expressão, sempre no "entre" das linguagens.

Leio muito, vejo muitos filmes, acompanho as artes visuais, mas, me interesso pelas cenas que estão nas ruas, na fala dos que estão perto de mim, também. Mas, vamos lá.

Hoje, posso dizer que Georg Büchner, com sua dramaturgia crítica, com muitas camadas de reflexão sobre o homem e, ao mesmo tempo, direta e explosiva, é uma grande influência.

No cinema, adoro os trabalhos do Wes Anderson, porque ele trata de relações familiares, por exemplo, com uma combinação de drama e humor que são irresistíveis. No cinema, ainda, as questões sobre representação, tratadas por Eduardo Coutinho têm me interessado muito. Também, os artistas com os quais trabalho diretamente no grupo Obragem acabam por me influenciar, porque admiro suas capacidades.

O Estado: Pode falar um pouco sobre o novo projeto, Dossiê Büchner, e qual a relação dele com os outros trabalhos da companhia?

Trata-se de uma combinação de várias ações voltadas para a pesquisa, criação e fomento do teatro. A interlocução entre os artistas do grupo Obragem e diferentes artistas e pensadores, como a atriz Eleonora Fabião e o tradutor Tércio Redondo; leitura de textos de Georg Büchner, oficina do grupo Obragem para artistas e estudantes de teatro; além de uma montagem, são algumas dessas ações.

A identificação com a obra de Büchner revela sobre as características do grupo Obragem, que está construindo uma linguagem própria de expressão, por meio de uma dramaturgia textual original e pelo aprofundamento das questões do corpo.

Outros trabalhos do grupo Obragem discutem as formas de opressão que atuam sobre o homem e revelam sintomas da nossa sociedade, como o isolamento, o automatismo das relações ou a loucura, por exemplo. Dossiê Büchner dá continuidade ao desejo artístico do grupo Obragem, de entender as tensões que tomam o homem e o seu ambiente.

por PAULA MELECH
imagem DANIEL CARON
originalmente publicada em 31.01.2010.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

um mergulho no universo de Edith de Camargo


Dona de uma voz fascinante, Edith de Camargo constrói uma carreira que mescla popular e erudito, experimentalismo e minimalismo, em combinações harmônicas que a destacam na movimentada cena da música contemporânea. Coerência que se equipara com o universo das suas influências, desde o Lied Alemão até a originalidade da violinista e cantora checa Iva Bittová.

Enlaces com o chorinho e a bossa nova compõem uma narrativa que avança e abre outras janelas, revelando sempre novas cores na trajetória eclética da cantora, compositora e multi-instrumentista. Edith nasceu na Suíça, mas há 15 anos escolheu Curitiba para viver.

A carreira de Edith de Camargo tem uma marca própria, ainda que concebida coletivamente nos três álbuns do Wandula ou registrado em seus dois discos solo.

O resultado vem da paixão de dar forma ao ofício escolhido, que reverbera em outros lugares: é preparadora vocal de grupos teatrais, professora de canto e compõe trilhas sonoras para teatro e cinema.

Com a mesma delicadeza com que cuida do seu trabalho, Edith conversou com O Estado do Paraná.

O Estado do Paraná: Como é você compor músicas em outros idiomas e, no entanto, atuar no Brasil? O que você acha que muda na identificação por parte do público?

Compor nunca foi um exercício intelectual de construção para mim. A língua surge de acordo com as ideias que aparecem, de forma natural, e vou desenvolvendo a partir disso. Penso que a música é um veículo universal e o essencial dela é transmitido ao ouvinte pelo conjunto musical que a canção é. Entendendo o texto com certeza aumenta a compreensão e a apreciação, mas a experiência sonora assim como o algum acesso à poesia, creio, que todo mundo tem através da melodia e sonoridade e através da expressão vocal.

O Estado do Paraná: Como é para você o processo de preparar um show e depois apresentá-lo, tendo contato direto com o público?

Como você diz, a preparação de um show é um processo. As ideias se formam e se confirmam ou são jogadas fora. Vou fazendo um setlist, aumentando ele na medida do trabalho e aos poucos formo um roteiro. Dentro disso, as ideias vão surgindo e se definindo. Na elaboração do meu último solo, Sing song - um ensaio poético, inventei uma cena para bonecos de papel maché para uma música que ainda não tinha finalizado. Acontecem coisas assim... um show envolve roteiro, luz, cenário, figurino, movimentação etc., e para que ele aconteça, muita dedicação. A hora da apresentação para o público é um ato muito intenso e especial. Talvez isso gere o nervosismo, que muitas vezes tem que ser dominado antes de entrar no palco... ter platéia é muito bom e essencial, pois sem público nosso preparo não faz sentido. O público escuta, assiste e mergulha por um momento no universo que criamos. muita responsabilidade...

O Estado do Paraná: Como se dá o processo de fazer trilhas para peças de teatro?

Quando tenho um tema, uma base a partir da qual eu posso criar, a metade do caminho está andado. Estudo o texto, assisto ensaios e converso bastante com o diretor, o que é essencial para que a música esteja expressando a intenção certa em cada cena.

O Estado do Paraná: Como é para você viver tão longe do lugar onde nasceu?

Nem sempre é fácil estar longe da família, da nossa matriz. Quando morava na Suíça muitas vezes sentia uma saudade de estar longe, o Fernweh, como a gente chama em alemão, e penso que a vinda para o Brasil calou isso de uma vez por todas, pois fiquei. No início tive que aprender a administrar muitas faltas e aprender os códigos sociais e culturais daqui. Hoje, depois de tantos anos, eu sinto que Curitiba é lugar que escolhi para viver. Não é porque é o melhor lugar, mas porque minha vida acontece aqui, portanto é meu melhor lugar.

O Estado do Paraná: Em que ponto o Brasil influenciou na sua música?

Em muitos pontos. Eu devo muito aos meus diversos excelentes professores que tive quando estudei no Conservatório de MPB e nas Oficinas de música. Quero citar a pratica de rítmica de José Eduardo Grammani, que me ajudou muito a desenvolver minha musicalidade. A bossa nova, o Tom Jobim, que admiro muito e estudei bastante, e também o chorinho, que por ter uma base na Polka e no Schottisch, sempre me soou familiar.

O Estado do Paraná: O que você escuta atualmente e com quem gostaria de cantar?

Gosto de escutar músicas de diversos gêneros e lugares do mundo. Atualmente escuto compositores curitibanos, a trilha sonora do último filme de (Pedro) Almodóvar, Abraços partidos, Buika e Chucho, o novo CD de Sigur Ros, a trilha sonora do filme francês les chanson d’amour e tango eletrônico (risos). Adoraria cantar com a Beth Gibbons do Portishead, a Björk, Elizabeth Fraser do Cocteau Twins, a Jane Birkin, o Neil Hannon do Divine Comedy e se estivesse vivo, o Cartola.

O Estado do Paraná: Como você se vê dentro do cenário musical de Curitiba?

Sou uma entre muitos, temos um cenário musical muito rico aqui em Curitiba. Me sinto muito bem recebida, com o Wandula e meu trabalho solo também. Tenho recebido convites e estou trabalhando, o que é muito bom. Mas existe de fato a dificuldade de aumentar o espaço de trabalho, por conta da falta de produtores que temos, pelo menos para o gênero de música que faço.

O Estado do Paraná: Para você, o compartilhamento de músicas através da internet é interessante? Qual seria sua reação se visse um CD seu pirateado?

Sim, acho muito interessante essa nova possibilidade de trocar idéias facilmente e no mundo inteiro. Eu ficaria contente (em ver Cds seus pirateados) pois os meus esgotaram.. (risos). Mas acho muito importante que as pessoas que gostam da nossa música comprem os Cds. É uma forma de incentivar um trabalho independente. Aliás o CD La récréation do Wandula ainda está disponível.

O Estado do Paraná: Quem são as principais influências no seu trabalho?

Barbara, uma grande compositora e cantora francesa, o Lied alemão, a chanson française, os Beatles e o experimentalismo de Iva Bittová.

O Estado do Paraná: O que você ainda não fez que tem vontade de fazer?

Um sonho é tocar músicas minhas ou do Wandula com orquestra.


por PAULA MELECH
imagem CÍCIRO BACK
matéria publicada em 24/01/2010. Veja o original aqui.