domingo, 24 de outubro de 2010

Uma bola com casquinha, por favor!


Airton Serur dos Santos, 58 anos, trabalha de acordo com as estações do ano. Sua rotina, diga-se, é incomum: “No inverno descanso e no verão trabalho”. Essa variação entre o calor e o frio sacramenta o ofício que o progenitor da família, o pai Adalberto Pinto dos Santos, instituiu há 55 anos, quando abriu o Sorvetes Gaúcho.

Ele não tem do que reclamar. Busca nas recordações o tempo que passou e lembra que já foi pior. “O inverno era muito mais rigoroso. Em algumas épocas, o meu pai fechava as portas durante um ou dois meses porque ninguém queria tomar sorvete”.

Cravada na Praça do Redentor, ao lado do Cemitério Municipal, no tradicional bairro São Francisco, o antigo comércio renomeou o lugar. Hoje, o largo é mais conhecido simplesmente por Praça do Gaúcho - uma homenagem indireta ao pai de Airton, um gaúcho extrovertido de sorriso fácil.

A fama é justificável: “O meu pai era o típico gaúcho bonachão. Eu ia com ele no Mercado Municipal e ele conhecia todo mundo. Andando na Rua XV, as pessoas passavam cumprimentando”, lembra o filho com saudades do pai, que adotou Curitiba como morada durante os seus 73 anos de vida, até descansar em paz no ano de 1999.

Os irmãos de Airton - Leila, Adalberto e Marilis - enveredaram pelo mundo dos sorvetes assim, meio “sem querer querendo”. Em uma determinada época, todos seguiram para carreiras não ligadas diretamente ao legado do pai, mas acabaram se encontrando, mais cedo ou mais tarde, atrás dos antigos balcões. Depois da morte da mãe, Nádia Serur dos Santos, em 2003, são eles que tomam as rédeas da situação: a razão social agora é Irmãos Serur dos Santos.

E lá se vão 50 e tantos anos. Nesse tempo, o Sorvetes Gaúcho viu muita coisa acontecer. A profusão de casas e prédios e a construção da pista de skate mudaram o cenário do ambiente. Airton não quer ficar para trás. Com o tempo, os mais de 30 sabores de sorvetes passaram por algumas mudanças: os de café e iogurte, por exemplo, deram lugar aos sabores comemorativos como panetone e açaí, que vem acompanhado de granola e banana.

A oferta de sabores - todos produzidos por eles - também é regida pela estação do ano. “Damasco voltamos a fazer, que agora é uma época boa”.

Pregada na parede, ao lado da máquina registradora, uma fotografia do pai de Airton rende muitas histórias e lembranças. “Aquela foto é muito antiga, né? Muitas pessoas olham e nem reconhecem. Ele era bonitão naquela época, mas depois chegou a pesar 130 quilos”.

A localização ao lado do cemitério rende muitos clientes ao lugar. Dia de Finados, então, é certeza de muitas vendas. Airton conta que, dias desses, apareceu um senhor lá pelos seus 80 anos que acabava de homenagear um amigo, morto há dez anos. “Até bolo teve. Ele saiu do cemitério, veio aqui, olhou a foto e disse que conheceu o meu pai. Ficamos aqui, batendo um papo. Os antigos clientes sempre reaparecem”, diz Airton.

O menino Adalberto nasceu e cresceu em Itaqui, Rio Grande do Sul. Aos 20 e poucos, veio para Curitiba estudar Química Industrial na Universidade Federal do Paraná. Conheceu Nádia em um chá de engenharia (espécie de baile) e se casou com ela em 1951. Ele se formou, os dois retornaram para a cidade natal dele para tentar a vida em uma fazenda da família. Não deu certo. Ela, que era de Porto Alegre, não se acostumou à vida na roça.

Tiveram filhos. Aqui, a experiência da faculdade não vingou e o casal saltou sem paraquedas para o que a vida poderia oferecer. Compraram uma lotação, mas não era exatamente o tipo de trabalho que os deixava felizes. Um dia, Adalberto viu o ponto, a dita casa, para alugar e arriscou. Deu certo.

Mudaram-se com a família toda, o comércio tinha nos fundos uma casa que serviu de morada. Na frente, o Bar, Mercearia e Sorveteria do Gaúcho. Em 1976 - no mesmo ano em que foi construída a pista de skate - o casal decidiu largar mão da mercearia e do bar e apostou na sorveteria. Balcão, mesas, cadeiras e máquinas datam dessa época.

publicada no jornal O Estado do Paraná
foto: Ciciro Back

Ao som da música curitibana


Luiz Felipe Leprevost e Thiago Chaves gostam de encontros. Se for naquele esquema de festa cheia de amigos, melhor ainda. Essa característica comum foi o que levou o primeiro, poeta, músico e dramaturgo a topar com o segundo, músico e compositor. No momento em que os interesses se encontravam, apareciam os primeiros sinais do que se tornaria uma parceria.

Thiago relembra o momento: “Ele me passou uma letra pra musicar e percebemos que a harmonia acontecia”. A canção, Sonâmbulo, conta a história de um cara que está enfrentando mal a relação com o universo underground. A “letra triste”, conta Leprevost, é consequência do modo como o clima do inverno reverberava dentro deles. A temperatura refletiu, pontualmente, nas composições produzidas a quatro mãos e que, agora estão prontas para serem ouvidas.

Este é um momento que aflige a maioria dos músicos que desenvolvem trabalhos autorais em Curitiba: afinal, onde tocar? O Wonka Bar, na Rua Trajano Reis, é um desses lugares onde o foco está qualidade musical, privilegiando artistas da cidade. Há cinco anos, o endereço, no bairro São Francisco, reúne músicos, escritores poetas, atores e público em torno de uma mesma vontade.

Interessada no potencial dos artistas da cidade, a proprietária Ieda Godoy abriu as portas do Wonka com a disposição de tornar o endereço um reduto de produção cultural de qualidade. “Desde que abri o bar [em 2005], penso nessa característica, muitas pessoas começaram apresentando seus trabalhos lá”. Ela cita como exemplos o grupo Molungo, Troy Rossilho, Alexandre França, Leo Fressato e o próprio Leprevost. Copacabana Club e Bonde do Rolê são outras bandas que sempre aparecem.

Apostar na produção cultural de Curitiba não é uma novidade, mas a apuração de um universo já conhecido por Ieda - dona do antigo Bar Dromedário (fechado em 2002). “O curitibano sempre teve essa coisa de não se valorizar, mas agora estão se olhando com mais carinho para o trabalho das pessoas. Isso é lindo. É muito emocionante ver esse respeito pelo artista, essa comunhão com o público”.

O sucesso das noites é efeito do criterioso processo de curadoria a que a proprietária se dedica. “Sempre que tem algum trabalho próprio eu me interesso em conhecer. Tenho alguns critérios para selecionar e fico felicíssima quando vejo as coisas acontecerem”. Ela cita como exemplos o Copacabana Club e o Bonde do Rolê, bandas que se criaram dentro do Wonka e hoje ganharam o País.

No palco

O show iria começar às 23 horas, mas às 19 horas Leprevost e Thiago já ensaiavam o trabalho que foi apresentado na última noite de quarta-feira no projeto Homens de ferro. Um intervalo foi o tempo necessário para o papo se dirigir aos espaços que tornam possível esse trabalho.

Thiago ressalta que em lugares assim a música é expressão artística e não somente entretenimento. “Queremos mostrar o movimento. Os compositores necessitam desses espaços, onde não precisam de editais para tocar a sua música”. Leprevost completa: “Tem uma grande rede de pessoas conectadas na produção artística. A demanda existe. Queremos dialogar com a platéia com o interesse mútuo de expansão dos sentidos por meio da arte”.

Essa rede que interliga os artistas da cidade certamente contribui com a disseminação da música partindo do desejo de expressão autêntica. Em sintonia de pensamento e vontades, os parceiros Uyara Torrente (A Banda Mais Bonita da Cidade) e Raphael Moraes (Nuvens) foram convidados a incrementar o show no porão do Wonka.

O repertório, inspirado pelo inverno, desenhou um clima favorável às letras mais melancólicas, incluindo as três inéditas Pó, pó, pó; Mi, mi, mi e Assobiando apelo. A primeira, com letra e música de Leprevost, é um pequeno poema declamado com o violão no colo. Mi, mi, mi, uma parceria com Rodrigo Lemos e Ligia Oliveira, emergiu em um desses encontros, sublinha Leprevost, onde em “90% dos casos surgem canções”. Já Assobiando apelo é uma letra escrita há tempos que ganhou agora o acompanhamento da guitarra de Thiago. “É a história de um cara que está triste e as pessoas passam a não notá-lo mais. Ele foi se apagando e assobia essa melodia”, explica o autor.

publicada no jornal O Estado do Paraná
foto: Olívia D’Agnoluzzo

sábado, 2 de outubro de 2010

Intimidade superficial


Para o poeta Haroldo de Campos, a tradução de textos criativos será sempre uma recriação. Cândida Monte, Neto Machado, Eduardo Simões e Talita Dallmann se valem dessa premissa quando se apropriam da obra do escritor Valêncio Xavier na concepção da peça Engarrafados.

O trabalho, contemplado pelo Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, estreou ontem e permanece em cartaz até o dia 10 de outubro no mini-auditório do Teatro Guaíra.

Antes de fazer uma adaptação do trabalho de Xavier, a intenção foi inscrever o trabalho do escritor em um “fazer de novo”, onde a ideia principal é pensar a cena a partir de conceitos empregados por ele.

“Nossa busca não era por encenar a obra, mas perceber como ele se apropria dos elementos para dar outro sentido a eles, trabalhar com a tradução intersemiótica”, diz Neto Machado, que assina a direção ao lado de Cândida Monte.

A peça reúne as possibilidades de transposição do texto em imagem e brinca com a materialidade da palavra e suas propriedades sonoras e imagéticas. Em seus livros e filmes, o escritor mantém uma linguagem própria e bastante característica por seu hibridismo estético e pela mistura entre verbal, não-verbal e uma colagem de imagens e informações que mesclam realidade e ficção.

Influenciados pelo interesse na linguagem cinematográfica despertada pelo autor, outra referência presente na montagem é a obra do cineasta francês Jean-Luc Godard. No palco, a referência é percebida no jogo estabelecido entre ator, personagem e público. “A dupla é sempre presente nos filmes de Godard, reflete a ideia de cumplicidade, de pessoas que criam uma intimidade”, conta Neto.

A dupla, vivida por Eduardo Simões e Talita Dallmann, estabelece uma relação instantânea: eles não se conhecem, mas decidem fazer um trato e criam uma intimidade do superficial.

“Não é o drama, não é nada pesado. É aquela liberdade do dia-a-dia, escovar os dentes na frente do outro, não se preocupar em dizer bobagens, não ter censura entre um e outro”, o diretor completa, explicando que o pacto avança sobre o público, que se conhece simultaneamente.

A atmosfera criada pelo diretor francês ainda é referenciada no palco através de filtros distintos de filmagem, alterando diretamente a maneira como a cena é vista.

Filtros de cor e trocas de roupas entre os personagens concretizam esse conceito. Nesse processo também se destaca a importância da organização dos elementos em um contexto dramatúrgico, uma disposição sutil, que quase oculta a importância da ordem que se estabelece.

Trajeto

A primeira faísca de onde surgiu a ideia para a concepção de Engarrafados veio em consequência de um projeto sobre o poeta Manoel de Barros. A pesquisa resultou na peça Descoisas, pré-coisas e, no máximo, coisas, que estreou em 2006.

Com direção de Cândida Monte e com os atores Luiz Bertazzo e Talita Dallmann, a montagem sublinhava a potência imagética dos textos ao manter o foco sobre o raciocínio do poeta.

O processo de pesquisa de Engarrafados teve início em 2008 e incluiu pesquisas em filmes, textos e trabalhos acadêmicos sobre Valêncio. A primeira montagem com o nome de Manual de instruções para um homem engarrafado estreou em 2009 e participou da Mostra Cena Breve.

Para Neto, esse período foi fundamental para olhar o trabalho com mais distanciamento. “Queríamos repensar a peça para saber o que faria sentido dizermos hoje”.

Serviço

Engarrafados. Em cartaz até 10 de outubro, no mini-auditório do Teatro Guaíra (Rua Amintas de Barros, s/n.º, Centro). Quarta a domingo, às 20h. Ingressos: R$10. Telefone: (41) 3304-7982. Não recomendado para menores de 14 anos.

foto Alessandra Haro