domingo, 23 de janeiro de 2011

"O que eu reivindico é a liberdade de expressão


Brincos, unhas pintadas, salto, saia. Enquanto penteia os cabelos, alinhados num comportado chanel, o cartunista Laerte se prepara para mais um dia de trabalho. Suas impagáveis tirinhas circulam nos principais jornais brasileiros, mas o que poucos sabem é que este sujeito bem-sucedido, beirando os 60, bom pai, está se permitindo vivenciar um lado seu que até poucos anos era um mistério.

Em sua busca pelo autoconhecimento, Laerte aderiu ao crossdresser, homens que se vestem com roupas de mulher sem que isso esteja relacionado ao homossexualismo. A opção deixa a maior parte das pessoas pasmas. Mas o cartunista não tem a pretensão de mudar de sexo. Ele também não é um travesti e nem gosta muito de ficar martelando definições.

Laerte encara o crossdresser como transposição de limites, uma vontade de vivenciar e compreender os códigos femininos. “É a necessidade de uma revolução masculina, de questionar a obrigatoriedade de certos hábitos e se libertar do código de gênero. O que eu reivindico é a liberdade de expressão”.

Quando caminha pelas ruas de São Paulo, cidade onde nasceu no inverno de 1951, Laerte experimenta as mais diversas reações. “Existem atitudes de apoio e empatia, mas também quem fique incomodado”.

Apesar disso, o cartunista reconhece os benefícios de sua opção. “O que eu estou trabalhando dentro de mim está sendo um processo muito rico. Tem a ver com autoaceitação. É uma coisa muito natural, a descoberta de algo em mim que antes não podia se expressar”, reflete o cartunista, que já tem 40 anos de carreira e tiras como Piratas do Tietê e Overman publicadas em jornais como Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo.

A descoberta

A coisa toda começou vagarosamente e, aos poucos, foi se revelando em sinais sutis. Primeiro, um de seus personagens, o Hugo, decidiu “se montar”. Arranjou vestido, batom, salto alto e se jogou no mundo. Laerte assumiu nos quadrinhos suas vontades e inquietações. Foi aí que ele percebeu que havia uma lacuna, um desejo que até então se negava vivenciar às claras.

O cartunista sabe que conceitos sobre gênero são muito profundos. O que vestem e os padrões de comportamento esperados de um homem e de uma mulher são, via de regra, irretocáveis. Na prática, quem adere ao crossdresser passar por situações que vão da indiferença ao espanto e mesmo à hostilidade. Mas, para Laerte, o tempo é um aliado fiel que só faz clarear a percepção de que a principal ameaça não é a que vem de fora. “Quando o sujeito se aceita como de fato é, tudo se resolve mais facilmente”.

Saia e salto

As roupas e acessórios femininos ganharam espaço nos armários de Laerte aos poucos. Primeiro veio a intimidade com brincos, colares e unhas pintadas. Depois o caminho se abriu e ampliou as possibilidades para um look totalmente feminino, incluindo o corte de cabelo chanel.

Passar para um mundo onde a variedade de roupas transcende o espectro “jeans+camiseta+tênis” é uma das melhores descobertas nos últimos tempos, comemora o cartunista. Ao adentrar no universo feminino, Laerte é detalhista na escolha das peças. “Tem as roupas que você gosta e as que lhe caem bem. Gosto de experimentar e sentir se aquilo me representa”.

Muito além do gênero

Para o psicanalista Geraldo Eustáquio, adeptos do crossdresser são pessoas que gostam de usar coisas socialmente destinadas ao outro gênero. O psicanalista esclarece que ser gay ou não é outra questão. “Não existe uma relação direta”. Na visão dele, “a sociedade deve se fundamentar pelo respeito aos direitos das pessoas. Qualquer forma de preconceito só alimenta o retrocesso social”.

Adeptos também em Curitiba

Entre os adeptos locais, há os que adotam nomes femininos, como a Juliana. E, já que estamos falando com o lado feminino do camarada, vamos suprimir o nome masculino de batismo. Para ela, o crossdresser se resume em breves palavras: “é como um hobby”. Assim como Laerte, Juliana não é homossexual nem travesti. “Ela”, inclusive, tem uma namorada que a acompanha nos encontros mensais onde se reúnem homens que gostam de usar roupas femininas, maquiagens e demais badulaques. Em Curitiba, o grupo de 25 pessoas é bem unido: organiza festas descontraídas, comemora Natal e Réveillon e faz também as reuniões de “sapos” - é assim que eles se chamam quando estão vestidos de “homem”.

São quase infinitas as histórias envolvendo situações bizarras encaradas por eles quando estão “montados”. Certa vez quatro adeptos foram parados pela polícia ao entrar na contramão quando voltavam de uma festa. Os policiais, espantados com o que viram, acabaram deixando passar a infração.

Quem acaba levando vantagem com tudo isso são as namoradas e esposas. Programas como olhar vitrines, comprar roupas, maquiagens e sapatos passaram a ter a companhia dos namorados e maridos. Juliana, que trabalha como empresária autônoma, descobriu um novo prazer: “Agora eu me interesso mais pelo universo feminino, vou com minha namorada nas lojas e dou mil pitacos. Ajudo nas compras e ainda aproveito para ver algo para mim”.

Publicado originalmente no jornal O Estado do Paraná.

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