sábado, 2 de outubro de 2010

Intimidade superficial


Para o poeta Haroldo de Campos, a tradução de textos criativos será sempre uma recriação. Cândida Monte, Neto Machado, Eduardo Simões e Talita Dallmann se valem dessa premissa quando se apropriam da obra do escritor Valêncio Xavier na concepção da peça Engarrafados.

O trabalho, contemplado pelo Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, estreou ontem e permanece em cartaz até o dia 10 de outubro no mini-auditório do Teatro Guaíra.

Antes de fazer uma adaptação do trabalho de Xavier, a intenção foi inscrever o trabalho do escritor em um “fazer de novo”, onde a ideia principal é pensar a cena a partir de conceitos empregados por ele.

“Nossa busca não era por encenar a obra, mas perceber como ele se apropria dos elementos para dar outro sentido a eles, trabalhar com a tradução intersemiótica”, diz Neto Machado, que assina a direção ao lado de Cândida Monte.

A peça reúne as possibilidades de transposição do texto em imagem e brinca com a materialidade da palavra e suas propriedades sonoras e imagéticas. Em seus livros e filmes, o escritor mantém uma linguagem própria e bastante característica por seu hibridismo estético e pela mistura entre verbal, não-verbal e uma colagem de imagens e informações que mesclam realidade e ficção.

Influenciados pelo interesse na linguagem cinematográfica despertada pelo autor, outra referência presente na montagem é a obra do cineasta francês Jean-Luc Godard. No palco, a referência é percebida no jogo estabelecido entre ator, personagem e público. “A dupla é sempre presente nos filmes de Godard, reflete a ideia de cumplicidade, de pessoas que criam uma intimidade”, conta Neto.

A dupla, vivida por Eduardo Simões e Talita Dallmann, estabelece uma relação instantânea: eles não se conhecem, mas decidem fazer um trato e criam uma intimidade do superficial.

“Não é o drama, não é nada pesado. É aquela liberdade do dia-a-dia, escovar os dentes na frente do outro, não se preocupar em dizer bobagens, não ter censura entre um e outro”, o diretor completa, explicando que o pacto avança sobre o público, que se conhece simultaneamente.

A atmosfera criada pelo diretor francês ainda é referenciada no palco através de filtros distintos de filmagem, alterando diretamente a maneira como a cena é vista.

Filtros de cor e trocas de roupas entre os personagens concretizam esse conceito. Nesse processo também se destaca a importância da organização dos elementos em um contexto dramatúrgico, uma disposição sutil, que quase oculta a importância da ordem que se estabelece.

Trajeto

A primeira faísca de onde surgiu a ideia para a concepção de Engarrafados veio em consequência de um projeto sobre o poeta Manoel de Barros. A pesquisa resultou na peça Descoisas, pré-coisas e, no máximo, coisas, que estreou em 2006.

Com direção de Cândida Monte e com os atores Luiz Bertazzo e Talita Dallmann, a montagem sublinhava a potência imagética dos textos ao manter o foco sobre o raciocínio do poeta.

O processo de pesquisa de Engarrafados teve início em 2008 e incluiu pesquisas em filmes, textos e trabalhos acadêmicos sobre Valêncio. A primeira montagem com o nome de Manual de instruções para um homem engarrafado estreou em 2009 e participou da Mostra Cena Breve.

Para Neto, esse período foi fundamental para olhar o trabalho com mais distanciamento. “Queríamos repensar a peça para saber o que faria sentido dizermos hoje”.

Serviço

Engarrafados. Em cartaz até 10 de outubro, no mini-auditório do Teatro Guaíra (Rua Amintas de Barros, s/n.º, Centro). Quarta a domingo, às 20h. Ingressos: R$10. Telefone: (41) 3304-7982. Não recomendado para menores de 14 anos.

foto Alessandra Haro

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